Cinzeiro de Latão 23
Veneza / Bitucas / Comic sans / Vilões alimentícios / A teoria do doutor Tonga (conto)
Cinzeiro 23, 1º de junho de 2024.
Veneza
Estive em Veneza há dez anos, por um dia apenas. Gostei muito. Parece uma imagem formada naqueles monóculos de plástico que se vendiam como chaveiro nos anos setenta e oitenta. É muito bonita, tressua história, mas é um lugar difícil de andar: é tudo muito estreito e apinhado de gente de todas as nacionalidades sapateando em cada metro quadrado, numa versão barroca da estação da Sé às seis e meia da tarde; andar pelas passagens estreitas, bordejando os canais, é reviver a confusão babélica. A cidade é como é porque, no século V da presente era, o povo do entroterra vêneto estava de saco cheio das incursões dos bárbaros (dos longobardos, acho) e resolveu levantar umas palafitas no banco de areia que está no meio da laguna. Veneza, em seus primeiros anos, devia ter um aspecto mais de favela do que o de città d’arte.
A estética de Veneza é favelística. O contato com a água, antes de mofá-lo, transformou aquele povo de refugiados em navegadores, e estes em comerciantes. A riqueza gerada pelo comércio com o Oriente sumiu com as taperas e trouxe os palácios construídos por arquitetos pagos a peso de ouro, ou melhor, de pimenta. Veneza decaiu depois que Vasco da Gama ganhou o Índico dobrando o Cabo das Tormentas (hoje da Boa Esperança) e tornou o comércio com o Oriente muito mais rentável, visto que não era preciso ir de Alexandria à Índia no lombo de camelos. A Sereníssima se manteve independente até o final do século XVIII, quando Napoleão acabou com a república dos doges.
Sobraram os sinais da opulência: o Palácio Ducal, a Catedral de São Marcos e as igrejas magníficas, tudo entremeado pelos canais. Fora os músicos e pintores: basta se lembrar de Vivaldi. Veneza, além de tudo, se destaca pela importância cultural. Se isso não ficar claro, é difícil entender a cidade e aproveitá-la. E o que ouço de reclamações do brasileiro classe média que para lá vai não está escrito. Veneza não é a Disney. A Disney foi pensada e construída para receber turistas; Veneza não.
A cidade tem um cheiro característico de salsugem, principalmente no verão; a água dos canais quase sempre está esverdeada, porque no interior da laguna a movimentação da água é menor e favorece o crescimento das algas. Muitos compatriotas voltam reclamando de lá. Mas, ao mesmo tempo, o brasileiro é aquele cara que quer comer arroz e feijão em Nagoia. É, amigo, parece que Veneza não foi feita para você. Ou o contrário: você não foi feito para Veneza. É melhor ir visitar a Disney.
Bitucas
Com esse negócio de impostos, para o Estado brasileiro vale a velha história do “só a cabecinha”. Como se diz pelos botecos, o membro não tem ombros: aí vêm dez polegadas de ereção vigorosa num só empurrão. O Estado, quando se trata de impostos, é priápico. E há quem acredite na honestidade de uma reforma tributária.
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O pão substitui o prato e o arroz. Arroz e feijão é um sinal indelével de terceiro-mundismo.
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Não existe mais crítica cultural nos jornais como houve nos anos setenta, oitenta e noventa: tudo virou uma baboseira sórdida. A cultura, pseudocultura, foi estatizada.
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No Brasil, o tal debate se resume a uma tentativa de estupro discursivo: um tenta enfiar opiniões no outro a seco e no grito.
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— O senhor é favorável ao hermetismo poético ou à poesia para todo o mundo, para todas as sensibilidades?
— A poesia para todas as sensibilidades. Todos os grandes poetas foram acessíveis ao povo em geral. Seus versos eram decorados e declamados nos salões e nas ruas. Poesia é comunicação. A poesia hermética é reacionária. E onde o tempo, nestes dias de tumulto, para entender esses charadistas? Tudo hoje tem de ser rápido e eles pretendem que os leiamos duas ou três vezes consecutivas para chegar a compreendê-los.
(Agripino Grieco no Suplemento Dominical de A Manhã, de 17 de fevereiro de 1946, em entrevista a Almeida Fischer, p. 2)
Comic sans
O uso de Comic sans deve limitar-se a eventos e materiais infantis; ela é inadmissível, por exemplo, na placa de um consultório médico ou em qualquer tipo de comunicação direcionada a maiores de cinco anos. Que pratos malfeitos e com excesso de açúcar pode ter um restaurante cujo cardápio esteja composto com Comic sans? Um velório cujo aviso ostente a fonte vira uma festa infantil, com o morto fazendo de bolo. As armas de um fuzilamento serão pistolas de água se a sentença for escrita com Comic sans. É fonte subversiva que distorce tudo o que tenta comunicar, um Midas com nariz de palhaço. Ou fica tudo parecido com algo que estaria na primeira versão de The Sims, numa daquelas descrições engraçaralhas de móveis e objetos domésticos. Você, se tem a minha idade ou um pouco menos, deve ter jogado The Sims. O jogo abusava da fonte: tudo era escrito com ela.
Tenho para mim que o 11º mandamento, constante naquela tábua que escorregou da mão de Moisés e se quebrou (vide História do Mundo - parte I), era “Não escreverás nada em Comic sans”. Se a existência da Alemanha nazista e a da Comic Sans fossem coincidentes, certeza que aquele “Arbeit macht frei” do portão dos campos de concentração estaria em Comic sans.
Vilões alimentícios
A opinião pública sempre tem um vilão alimentício na mira. Há os sacos de pancada, como a carne vermelha e os alimentos processados, e também os alvos da moda. Nos anos noventa aconteceram duas cruzadas: uma contra o café e outra contra os ovos.
Durante uns meses, foi menos problemático andar pelado na rua que admitir o consumo de café. Os jornais e a televisão nos bombardearam com estudos associando o café ao infarto, ao mal de Parkinson, à impotência, à flacidez da pele, à celulite e às micoses de pé. Do dia para a noite, o café, tão amigo do brasileiro, tornou-se um pária. Tentou-se inclusive promover a cevada torrada como Ersatz, mas o gosto da infusão da cevada é horrendo; fora a cevada torrada e moída ser parcialmente hidrófoba.
Algo depois, a bola da vez foi o ovo, acusado de ser um alimento rico em colesterol. Depois da sentença do supremo tribunal dos especialistas de televisão, esses paspalhos que aparecem de jaleco nos matinais televisivos para senhoras hipertensas, as pessoas começaram a fugir do ovo e recorrer a sucedâneos; não me lembro quais, mas é difícil pensar num ovo ersatz. Chegou mesmo a surgir um tal ovo pufa (?!), que era vendido como panaceia; mais caro que o ovo normal, claro. As donas de casa espectadoras dos programas matutinos de tevê ficavam alarmadas com malefícios, gangrenas, torcicolos e derrames associados ao consumo de ovo, arrolados em tom ameaçador por um aldrabão de jaleco branco. Se fosse dito que o ovo aumentava o índice de acidentes de trânsito por conta de cegueira temporária, as senhorinhas todas acreditariam.
Os dois casos mostram bem que estudos preliminares ou ainda em andamento podem causar mais malefícios que ganhos. No fim da história, tais estudos sumiram ou não resultaram em nada, a mídia sossegou o facho, o cafezinho teve suas virtudes reconhecidas e o ovo foi elevado a alimento saudável, desde que não seja frito, sendo uma fonte de proteína reconhecida inclusive pela comunidade maromba.
A teoria do doutor Tonga
O texto abaixo é a transcrição de fita cassete que veio em lote comprado pela internet. Trata-se da gravação de uma sessão da Sociedade Ufológica de Trabiju (SUTra), dos anos 1990, possivelmente a última de uma série. A fita sumiu durante alguma faxina, e a própria transcrição, que fiz entre 2006 e 2008, quase se perdeu.
A transcrição é importante para expor o vanguardismo da visão do doutor Tonga, advogado e membro da Sociedade assim identificado na gravação e cujo nome real jamais saberemos. A própria existência da SUTra se apoia apenas nessa gravação.
Presidente — […] com a presença de todos os membros da SUTra, declaro aberta a sessão e passo a palavra aos membros.
Doutor Tonga — Eu gostaria de fazer uso da palavra.
Presidente — É toda sua, advogado Tonga.
Tonga — Muito agradecido, presidente.
A questão que eu gostaria de trazer hoje para vocês é algo que venho pensando e estudando há muito tempo, talvez desde antes de me ter tornando membro desta egrégia sociedade. É claro que os senhores já se fizeram a famosa pergunta que empurra todos nós no colo dos estudos ufológicos, “Estaremos sozinhos no universo?”, e todos, conjunta ou individualmente, tentamos respondê-la.
[barulho de cadeiras sendo arrastadas; tosse; muxoxos indistintos]
Talvez o tema pareça por demais simplório ou muito amplo para os senhores membros, mas, estudando muito no decorrer dos anos, entre um julgamento e outro no Fórum de Ribeirão Bonito, cheguei a conclusões que, inexoravelmente, vão mudar totalmente os rumos da ufologia, inclusive as interpretações de Von Däniken.
[rumor de vozes; “Dinei, ’cês vão querer calabresa frita?”]
Peço calma a vocês; tudo ficará claro no tempo devido. Recapitulando. Muitas hipóteses e teorias já foram levantadas sobre o porquê de outros habitantes do cosmo nos visitarem com tanta frequência. Os avistamentos são uma constante na história da humanidade, mas a questão é que essas visitas sempre foram mal-interpretadas: uns as justificam dizendo que os seres extraterrestres fizeram da terra um laboratório genético, dizendo que somos mistos de raças alienígenas com primatas ou que os ETs tenham provocado a nossa evolução dos macacos.
O primeiro fato que trago, inegável, é que a Terra é o único planeta com água corrente num raio de mais de 4 anos-luz ou mais.
[rumor de vozes e vários “a-hã”, “certamente”]
Sim, é ponto pacífico. Outra questão é o nome da nossa galáxia: Via Láctea. Os gregos tinham uma ideia inicial, digamos, circular: chamavam-na de galaxías kíklos. Peço perdão pela pronúncia do grego, que não sei se é correta; mas o significado de kíklos é círculo. Os gregos, com todo o conhecimento que nos deram, incluíram no pacote esse engano, esse lapso de percepção, pois não se trata de um círculo, mas de um caminho, como bem observaram os romanos, talvez mais bem informados. Os romanos, com sua palavra via, abriram o caminho do entendimento.
[rumor de vozes; “é aula de história ou palestra de ufologia?”]
Calma, me deixem terminar o raciocínio. Como todos aqui presentes bem sabem, há vários monumentos pelo mundo, principalmente pirâmides, atribuídos aos alienígenas. Dizer que essas obras são feitos alienígenas é uma insensatez. Sim, há interesse extraterrestre, e, logo, influência deles, nessas construções, mas não exatamente ajuda direta ou que mãos… dedos… alienígenas as tenham feito. Os extraterrestres convenceram os terráqueos a construí-las, seja pela hipnose coletiva ou pela sugestão onírica. A forma mais comum dessas grandes estruturas eram círculos de pedra, como o Stonehenge, e, depois, com o avanço técnico da humanidade, pirâmides, como no Egito e na América Central. Essas estruturas, como muitos teóricos defendem, emitem energia, são antenas transmissoras…
[voz masculina nitidamente enfadada: “Ok, mas e daí?”; canto de cigarra]
Já estou quase lá. A nossa galáxia é Via Láctea, o nosso planeta é o único com água corrente em um bom trecho da galáxia e a alta frequência das visitas que recebemos; três fatos que nos levam à dedução mais óbvia: a nossa Terra é um ponto de parada.
[muxoxos; resmungos; barulho de cadeiras rangendo]
Não tem nada demais na Terra que justifique o interesse das civilizações avançadas que nos visitam. Mamíferos e mato não justificariam o interesse intenso dos alienígenas na Terra, pois essas porcarias existem em outros pontos do cosmo, como o capim-colonião, que é introdução extraterrena. É muito provável — e aí é minha opinião — que as nossas manifestações culturais sejam desprezíveis para os visitantes; que nós em si nada signifiquemos para eles, que nós sejamos apenas os mantenedores de uma estrutura que, sim, é importante para eles neste ponto do universo, neste ponto da estrada. As pirâmides emitem um facho de energia que sinaliza, que indica a presença da Terra, único planeta com água corrente num raio de 4 anos-luz…
[mais muxoxos, “O senhor já disse isso, doutor Tonga. Desenvolva.”]
O que eu estou dizendo, senhores, é que aqui, a Terra, é uma parada obrigatória para as naves que trafegam por esta parte do universo. Os extraterrestres vêm aqui… para usar o banheiro.
[vozerio; “bebeu, doutor Tonga?”; “porra, Tonga, como assim?”]
Sim, ir ao banheiro, beber água, comer algo; até mesmo levar uma lembrancinha. Por isso abduzem vacas e seres humanos. Alguns são suvenir… outros, pra comer. O fluxo de energia dos monumentos e o campo magnético do planeta são manipulados para ser um sinalizador, como uma placa na beira da estrada.
Presidente — Doutor Tonga, então o senhor afirma que a Terra é um boteco de beira de estrada, é?
Tonga — Mais ou menos. O fato de boa parte dos avistamentos se dar em regiões inóspitas prova que os ETs vêm à Terra pra satisfazer as suas necessidades fisiológicas de excreção, que são diferentes conforme a raça, como aponto no meu estudo sobre a cosmodefecação. Precisam de água pra lavar as mãos… e o próximo planeta com água está a 4 anos-luz daqui… As pirâmides, concluo, são um símbolo interplanetário que indica banheiro.
Presidente — Então nós, a humanidade, somos os faxineiros que são manutenção a um sanitário sideral?
Tonga — É.
Presidente — Doutor Tonga, o senhor está expulso da sociedade.
[sons de admiração; alguns aplausos]
Tonga — Vocês são uns pobres de espírito, uns soberbos; não estão prontos para uma verdade óbvia desse tipo [ameaças; “Vamos arrancar a sua pele!”]. Vocês acham que os ETs vêm aqui para estudar a humanidade, que nós somos especiais; mas, para eles, os humanos são os caras que mantêm o banheiro em ordem, como funcionários de posto de gasolina de beira de estrada… E é exatamente isso: a Terra é um posto de serviços na beira da estrada. As lavouras da humanidade são o papel higiênico dos alienígenas; aquelas marcas nas lavouras são marcas dos ânus dos ETs, como citei no meu trabalho sobre cosmodefecação…
[palavrões; ameaças; barulho de móveis sendo arrastados ou partidos; gritos de mulher; “A calabresa tá pronta!”; latidos de cão]
Fim da gravação.