Cinzeiro de Latão 25
Aleluia, caralho! / Bitucas / Trinta milhões / Café Girondino / Toninho Tibúrcio (conto) / Análise de um poema de Nego Antão
Cinzeiro 25, 15 de junho de 2024.
Aleluia, caralho!
O mundo do neopentecostalismo sempre me pareceu muito curioso como fenômeno auditivo, até por uma questão de personalidade: sou tímido e procuro passar despercebido. Os clamores, com intenções realmente babélicas, ou seja, de chegar a Deus substituindo a torre pelo grito, me chamam a atenção.
Um sábado, na época da faculdade, saí de casa para ir a uma das poucas festas a que fui convidado. Não que eu fizesse ou faça questão de convites para festas, pois, no geral, eu arrumava, e ainda arrumo, desculpas para não ir. Nada me parece ser motivo de folguedos. A palavra festa me soa sempre excessiva, me ofende.
Pois bem, para ir à festa, longe de casa, eu precisava tomar o ônibus até o metrô; o ponto era (e continua sendo) numa avenida, do lado oposto a uma igreja neopentecostal. Mas não era uma franquia, ou seja, não era uma Universal, nem uma Deus é Amor, mas uma independente, com denominação complicada; vamos dizer que era a Assistência da Sarça Ardente. Não era, mas fica sendo; me calo porque a bendita ainda existe, no mesmo lugar, quase vinte anos depois. O nome passa algo de exótico, de diferente, como os nomes que dão às cores de esmalte.
Por um período curto que antecedeu a Sarça, o salão teve outro nome, também de inspiração bíblica inusual, mas os neurônios que guardavam essa memória ou estão sendo usados para decorar as minhas senhas de e-mail, ou morreram em algum dos chiliques que tive nesses anos todos. Dizem que os chiliques matam os neurônios; eu, como bom chiliquento, devo ter perdido já meio cérebro. Antes do uso pretensamente sacro, o espaço tinha abrigado o único restaurante dos arredores por quase trinta anos, Ao Pé de Porco, cujo nome era desse jeitinho, preposicionado, como se fosse um restaurante da belle époque. Passando por ali todos os dias durante a infância, demorei um tempo para perceber que era um restaurante; a placa, desbotada, descascada e, quase certamente, a mesma desde a inauguração, tinha estética de para-choque de caminhão, o que me fez pensar que fosse oficina mecânica, porque também tinha um portão de chapas. Era um restaurante da época em que poucos iam a restaurante, num bairro-dormitório. Nunca entrei no comedouro, mas, da rua, se via um biombo de treliça, dos anos setenta, que isolava os comensais da vista da rua, e uma parede de elementos vazados. Um dia tudo deve ter sido pintado de verde-claro ou azul-piscina, mas a poeira e o tempo tinham deixado as paredes encardidas. Tudo muito largado, nada belle époque. Eu conheci apenas uma pessoa que comia lá com frequência: o barbeiro do bairro, a versão humana do Ned Flanders, com o mesmo cabelo, os mesmos óculos e o mesmo bigode; nunca vi uma pessoa se parecer tanto com um personagem de desenho animado, mas só percebi isso anos depois, quando conheci Os Simpsons. O circunlóquio todo valeu a pena. O destino desse tipo de minudência é perder-se no tempo, pois não faz história; os prédios são derrubados e mal sobram traços físicos da sua existência, que dirá dos usos que tiveram. É uma história inútil, porém sentimental. Mas voltemos ao dia fatídico.
No antigo restaurante, agora convertido em igreja estereofônica, estava ocorrendo o culto. Era o final de uma tarde nublada de sábado. Cheguei ao ponto, desses que são traves de concreto e telhas de fibrocimento, onde estavam já dois fulanos. Do outro lado da rua, o culto comia solto. O monólogo do pastor se misturava ao movimento da avenida; chegavam apenas sílabas e fragmentos de exaltações.
Por um acaso, o movimento da avenida cessou; seria uma janela de meio minuto, não mais. O som do culto se fez presente, dominou o ar e me chamou a atenção; eu pensava em algo antes, mas que se evaporou com a gritaria.
— … porque isso é a obra de Deus! — peguei o pastor falando, com uma voz grave, mas esgarçada como uma sacola de mercado ao vento.
— Aleluia! — respondeu a assembleia, e se seguiram uns segundos de silêncio.
O pastor:
— Ô você aí no fundo! Grita “aleluia”, caralho!
Me senti surpreendido. Olhei para os homens que estavam no ponto comigo, e eles também tinham uma expressão de espanto misturado com troça. Mas a admoestação pouco ortodoxa do pastor funcionou. Enquanto nós três no ponto nos perguntávamos o que estava acontecendo na igreja, uma voz masculina, tímida, segundou um “aleluia”.
Bitucas
Se Julio Iglesias quiser comer frango frito com vinho, ele come. Ele é o Julio Iglesias, o Chuck Norris espanhol. Ele come o que ele que quiser.
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Ouço o canto do quero-quero e sinto vontade de galeto. Os sons da natureza me dão fome.
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HB20, o Fusca gourmet.
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Assembleia da Sarça Al Dente, igreja evangélica italiana.
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Quero ver a inteligência artificial imitar a burrice humana.
Trinta milhões
Às vezes tenho inveja da realidade, que consegue ser mais surpreendente que qualquer texto surrealista. Recentemente, a mídia divulgou uma história insólita: um homem, nos Estados Unidos, achou que tinha direito a uma herança de 30 milhões de dólares. Não sei como se chega a esse tipo de conclusão, mas ele devia lá ter seus motivos, nem que fossem as vozes da própria cabeça.
A mulher com quem o herdeiro vivia amancebado e o filho dele decidiram lhe abreviar a vida para ficar com o dinheiro: meteram anticongelante no chá verde do homem, que estava de saída para o aeroporto. Ele iria pegar um voo para falar com o advogado que, tendo recebido os documentos, ia dizer que a tal herança não existia. No meio do caminho, começou a passar mal e, quando desceu do carro e foi socorrido, estava totalmente desorientado, como se bêbado, embora o teste feito não acusasse a presença de álcool. Um amigo meu que morou nos EUA me disse que envenenar com anticongelante é quase cultural: é a substância mais venenosa que eles têm à mão; é o chumbinho gringo.
O homem morreu no aeroporto e nunca soube que não era herdeiro de nada. A mulher contou uma história furada e acabou se traindo; a polícia descobriu, e ela terminou presa. Vai puxar cadeia por um bom tempo.
Todos danados por um dinheiro que nunca existiu.
Café Girondino
Pois o Girondino fechou as portas. O café, mais velho que a República e, portanto, mais respeitável, deixou de existir na semana passada. Ouso dizer que era o estabelecimento comercial mais antigo de São Paulo, mas não posso confirmar. Ele nem sempre foi na esquina da Boa Vista com a São Bento, com vista para o largo. Se não me engano, seu primeiro endereço foi na praça da Sé.
Os girondinos eram uma facção política na época da Revolução Francesa; uma subseção dos jacobinos, mas organizados ao redor de uns deputados oriundos da Gironda, sudoeste do país. Eram um grupo burguês que defendia a visão burguesa, o que era revolucionário no contexto da Revolução, com o perdão das tautologias. Mas a região do Girondino, o famoso Triângulo Central, deixou de ser burguês há muito; o lumpemproletariado o tomou de assalto; as lojas, depois de decadência prolongada, fecharam. O Centro Velho é uma região degradada e fantasma, mera passagem. E quem passa, passa correndo.
Tomei café lá várias vezes. Numa, inclusive, entre duas provas de concurso em Santana, fiquei lá umas duas horas lendo El pibe que arruinaba las fotos, do Hernán Casciari. O fato de o café ser na frente da estação São Bento facilitou muito.
O Girondino faria, no ano que vem, 150 anos. Mas em um país em que até museus tutelados pelo Estado pegam fogo, que se poderá dizer de um café? Em se tratando de Brasil, durou o equivalente a uma era geológica.
Toninho Tibúrcio
Toninho Tibúrcio dirigia sua caminhonete cabine dupla pela estradinha poeirenta; a camisa apertada suportava mal as banhas, que insistiam em pular a cada tranco do carro. A escuridão do campo era quebrada apenas pelo facho de luz dos faróis, que, de supetão, deram forma a uma choça. Toninho parou e pôs o corpanzil para fora, deixando a luz dos faróis chapando o casebre.
O trajeto, feito uma vez por semana, deixava Toninho cansado, mas era preciso; o calor desenhava rodas de suor sob os seus sovacos. O homem monumental parou diante da porta e bateu três vezes; de dentro, um fio de voz se fez ouvir.
— De quem é a mão que bate na minha porta?
E daquele homenzarrão saiu outro fiozinho de voz, trêmulo.
— Do prefeito Toninho…
A porta se abriu sozinha. Toninho sentou-se no chão, pois no único cômodo de terra batida não havia nem um banquinho. Ao centro, uma fogueira quase apagada e, por atrás, estava sentada uma velha magrinha, de rosto escavado.
— Boa noite, dona Doroteia. Trouxe a lei orçamentária pra que a senhora desse uma olhada…
A velha interrompeu Toninho com um gesto de mão. Cutucou a fogueira com um graveto e ficou observando a reação do fogo.
— É não.
— Mas não quer nem ver?
— Diga apenas que não. E basta.
Toninho levantou-se e fez uma reverência; fez ainda um ademane como se fosse sacar a carteira, mas foi interrompido pelo mesmo gesto de mão.
— Só mande rezar uma missa na matriz.
O prefeito escorregou para fora da casa e para dentro do carro. Hesitou; três vezes pôs as mãos no volante e três vezes as tirou. Fez o caminho de volta para a cidade do mesmo jeito, tomando cuidado para não ser visto.
No dia seguinte, com uma camisa nova, apresentou-se na Câmara, na sessão em que nove vereadores mal-ajambrados, magricelas e banguelas alguns discutiam a lei orçamentária da cidadezinha.
A presença do prefeito tomou o ambiente, uma sala sem reboque e com piso de cimento; sua figura valia por quatro vereadores. Parou diante dos edis, que ficaram mudos. A voz cheia ribombou na sala.
— Não.
— Mó de quê, Tonim?
— Não. E basta.
No mesmo pé, o excelentíssimo prefeito girou no sentido contrário e foi-se embora. Voltando para casa, nas trevas diurnas daquele fim de mundo, Toninho Tibúrcio estava convencido de que fizera o certo, pois assim mandara a vontade que o mantém no comando.
(2016, editado)
Análise de um poema de Nego Antão
Boleta de
pong-ping.
Eis um haikai revolucionário do mestre da poesia pós-moderna, Nego Antão, morador de rincões em que reina o cinza das telhas de fibrocimento. É quase inconcebível tanta concisão poética em um dístico — uma forma ocidental clássica —, mas que nos remete à simplicidade do haikai. Seu autor inclusive prefere que a chamemos de haikai, embora esteja fora da forma preconizada em português por Guilherme de Almeida, um haikai falto do terceiro verso. “Crio eles como se criam galinhas num galinheiro: meus versos têm penas e carne e cacarejam”, explica Antão, numa imagem onírica e avícola, remetendo aos galinheiros improvisados nas casas do subúrbio longínquo: o poema “tela de galinheiro”.
O poema, que não tem título — outro recurso magistral —, narra um jogo de pingue-pongue. Para um leitor desatento, pode ser uma estranha partida de pingue-pongue. Um estrangeiro jogando pingue-pongue na luxuriante atmosfera tropical do nosso país-potência, mas ainda cheio de desigualdades. Há, porém, mais mistério entre as folhas das bananeiras do que supõe a nossa vã filosofia.
Repitamos os versos em voz alta. Sintamos a força e a reverberação de suas aliterações sutis. “Boleta de / pong-ping”. Advirto-os, leitores: há mais.
“Boleta”, um diminutivo pouco usual de bola. Por que não “bolinha”? Na verdade, “boleta” aponta para o “boleto” de pagamento, uma relação consumista e que tem liames com o glorioso e radiante momento econômico vivido pelo país. Todos podem comprar. Todos têm seus boletos para pagar, mas Antão não somente celebra as benesses da era Lula: ele põe um elemento feminino, da liberação da mulher do jugo machista, trocando o gênero da palavra: “boleta”. Não apenas os machistas compram, mas também as mulheres, os gays, os transgêneros e os simpatizantes. Antão dá um banho de lirismo em toda a elite branca, cristã, machista e homofóbica com apenas uma palavra. Pergunto-me por que ainda não o indicaram ao Nobel.
Depois desse primeiro verso glorioso, vejamos o último: “pong-ping”. A inversão do nome do jogo mostra a inversão que a classe trabalhadora, com suas “boletas”, fez na mais-valia, ainda refletindo o primeiro verso. Não apenas mais a elite branca dos olhos azuis compra… os ensebadinhos do subúrbio — o conceito da sebência orgulhosa, tão exaltada por Antão, e também por alguns gêneros musicais como o rap e o funk — também compram, invertendo a situação de domínio. E digo mais: querem estar presentes à globalização, por isso a preferência por não aportuguesar o vocábulo. Mas a inversão dos termos originais também significa a insubmissão à cultura enlatada, manipuladora e planificadora dos Estados Unidos: é a faca apontada para o Tio Sam.
Essa é apenas uma amostra do livro de poemas de Nego Antão. A obra completa consta de cinco pérolas e foi impressa em um conceito ultramoderno de editoração: em uma folha corrida apenas, para que fosse acessível às populações oprimidas.
(2012, editado e acrescido)