Cinzeiro de Latão 28
Primeiro de julho de 1994 / Bitucas / Malaparte: Do lado dos católicos / Retratos provincianos em três por quatro / O tempero do churrasco grego / Mortos fictícios (conto)
Cinzeiro 28, 6 de julho de 2024.
Primeiro de julho de 1994
Em 1º de julho de 1994, coroando um plano de estabilização econômica, foi introduzida no Brasil a nossa moeda atual, o real; foi o fim de um ciclo inflacionário que se vinha arrastando desde final dos anos setenta, fruto de políticas econômicas implantadas por Delfim Neto, o nosso maior ministro da Fazenda (em tonelagem). O pico de hiperinflação foi atingido no começo dos noventa, quando chegamos a índices mensais de 80%. Essa é a história. Agora, como a tal micro-história está de moda, vamos ver o 1º de julho da minha ótica, de um adolescente que colecionava, ou melhor, juntava moedas. Como se trata de relato pessoal, dou-me a faculdade do caos.
Em 1º de julho de 1994, eu tinha doze anos e fazia o 6º ano do primeiro grau em uma escola da Zona Leste de São Paulo, construída no começo dos setenta, revestida toda de pastilhas cinza (que de vez em quando soltavam-se, uma a uma) e pavimentada de caquinho vermelho. Nas salas havia assoalho. Não usávamos uniforme — embora ele existisse — e, por mais pobre que fossem o bairro e nós alunos, não havia criança que assistisse às aulas calçando chinelo, como é comum hoje. Acontecia mesmo, eventualmente, de alguma professora mandar comprar este ou aquele livro didático.
Naquele momento, a minha família estava sem carro. O Opala 75 marrom-metálico do meu pai tinha sido roubado em agosto do ano anterior; fizemos o boletim de ocorrência, por mera formalidade. Sem seguro, ficamos lambendo o dedo. Foi a primeira e única vez que eu entrei em uma delegacia de polícia no Brasil. O acaso e a carteira roubada da minha cunhada me fariam entrar em uma delegacia de Buenos Aires, em 2008. Somente em meados de 1995 o meu pai conseguiria comprar outro automóvel: um Lada Laika sedã, acho que 91. Cada peça era feita em um país diferente da Cortina de Ferro, como as próprias peças traziam marcado.
A Alemanha unida era uma realidade que ainda ia fazer quatro anos; os escombros da União Soviética estavam quentes e, sambando sobre eles, um presidente de rosto vermelho e redondo, cuja embriaguez era a cara da nova Rússia: Boris Iéltsin. A Iugoslávia estava em plena guerra civil e ninguém sabia direito como e quando aquilo ia terminar. Cada país da Europa ainda tinha cada um a sua moeda: marco, franco, peseta, lira, dracma, escudo, xelim etc. A Áustria ainda não tinha entrado na União Europeia, o que faria em 1995; a própria expressão União Europeia estalava de nova: a transformação da Comunidade Econômica em União tinha acontecido no finalzinho de 1993, com a entrada em vigor do Tratado de Maastricht.
Estávamos no meio da Copa do Mundo dos Estados Unidos, da qual o selecionado nacional sairia campeão lá pelo meio do mês. O ar estava empesteado por “Hero”, da Mariah Carey. A África do Sul tinha deixado de usar a velha bandeira tricolor no primeiro trimestre. Tínhamos um presidente da República cujos maiores méritos eram um topete retrô e o fato de ter aparecido do lado de uma modelo sem calcinha no decurso do Carnaval daquele ano.
Exatamente dois meses antes, em 1º de maio, Ayrton Senna havia morrido em Ímola: foi a primeira vez que cantei o Hino Nacional em público. A direção da escola, no dia seguinte à morte do automobilista, fez com que nos perfilássemos no pátio dianteiro do zigurate de pastilhas e foi tocada uma fita cassete com o Hino Nacional. Não consigo me lembrar se houve discurso ou algo que o valha. Naquele período, tentando livrar-se da herança da “Revolução de 1964”, os símbolos pátrios haviam sido discretamente retirados da escola, pelo menos da minha. Havia uma bandeira nacional, toda manchada e pegando poeira, num mastro de madeira, dentro da diretoria; e durante todo o período que fiquei naquela escola, ou seja, de 1989 a 1996, a morte do Senna foi o único momento em que se cantou o hino em público, algo que não acontecia nem na véspera das datas pátrias. A segunda vez em que o cantei foi quando jurei a bandeira, na Junta de Serviço Militar do Tatuapé, no final de 1999.
Voltando ao 1º de julho, que foi uma sexta-feira. Como estávamos sem carro, fomos eu e o meu pai de ônibus para o trabalho, pois eram já férias escolares e eu ia ajudá-lo no nosso comércio, uma avícola, a sete ou oito quilômetros distante de casa. Embora os bancos não estivessem abertos, pois era por volta das 7h15, um adesivo de fundo branco do lado do cobrador já indicava: “Tarifa R$ 0,50/CR$ 1.375,00”. Os bancos abririam logo mais, às 9h, especialmente para o início da troca de moeda; abririam extraordinariamente também no final de semana, sábado e domingo. Pelo que posso me lembrar, foi a única vez na vida que vi bancos abertos no final de semana.
Já convivíamos com o real antes do 1º de julho; existiu, durante alguns meses, a Unidade Real de Valor, a URV, um índice de referência. Vários contratos já podiam ser celebrados nessa unidade e havia preços nela indicados, como em lojas de sapatos ou de bens duráveis, como automóveis e eletrodomésticos. Na prática, a URV tinha o mesmo valor do dólar paralelo. Era uma dolarização maldisfarçada.
Pouco antes das 9h, meu pai me deu uma nota da Baiana, ou seja, 50 mil cruzeiros reais, a mais alta em circulação naquele momento, e fui para a fila do banco, um Itaú gigantesco, que fica na última esquina da Conselheiro Carrão. Até o ano passado, ele continuava no mesmo endereço, num prédio modernoso e próprio. Havia já bastante gente na fila, talvez umas cinquenta pessoas. Na nossa avícola, eu havia colado, em uma das paredes de azulejos creme horrivelmente assentados, como a dentição de um inglês, um fôlder preto e branco do BC com as novas cédulas e moedas. Por conta da curvatura da palavra “centavos” naquelas moedas (veja aí, pode ser que você ainda tenha uma delas no bolso), dava a impressão de terem a superfície convexa, algo em que acreditei por algum tempo.
A nota que levei, os 50 mil cruzeiros reais, ao índice de conversão de CR$ 2.750 por real, resultou em R$ 18,18, cujo poder de compra hoje equivale a algo próximo de R$ 180. Cada moeda de um centavo contava. A caixa me passou três cédulas de 5 reais, três de 1 (a cédula de 2 só apareceria no final de 2001), além de uma moeda de 10 centavos, uma de 5 e três de 1. As moedas brilhavam, como toda moeda recém-cunhada, mas o aspecto era decepcionante: a efígie da República, que eu já conhecia da cédula de 200 cruzados novos/cruzeiros, comemorativa do Centenário da República, parecia-se mais com a Bruxa do Mar do Popeye do que com a Mariana. O papel, porém, nem dobra tinha; acho que foi a primeira vez que peguei dinheiro sem circular. Tinha cheiro de massinha de modelar; sim, eu cheirei as cédulas. Pelo menos a figura da Mariana das cédulas era bem mais nítida e benfeita; os animais, figurados no sentido vertical da cédula, no verso, também me pareceram uma novidade estética interessante, continuando o que já havia sido experimentado nas cédulas de 5 mil e 50 mil cruzeiros reais (Gaúcho e Baiana). Na época, acostumado com a variedade do meio circulante, cheio de vultos e grandes homens, as cédulas me pareceram dinheiro do Banco Imobiliário.
Apesar da euforia que tomou conta de parte das pessoas e da imprensa, a maioria seguia incrédula. Embora me parecessem a anos-luz de distância, por conta da minha pouca idade, os fracassos recentes do Plano Cruzado (1986) e do Plano Collor (1990) estavam bem nítidos na memória coletiva. Um receio não de todo infundado. Em casa, eu tinha quilos de moedas que haviam circulado nos últimos trinta anos e mal valiam o metal de que eram feitas. Todo parente nosso, para desespero da minha mãe, desovava essas moedas sem valor nas minhas mãos. Um freguês do meu pai, um velho com nome de velho, seu Onofre, incorporou o Velho do Restelo e disse:
— Seis meses! Não dou seis meses para que isso [mostrou na mão a nota de 1 real verdinha, do beija-flor] não dê pra comprar um chiclete.
Naquele então, 1 real comprava mais de dez chicletes, que custavam uns 7 centavos cada. Para o bem geral da nação, o plano deu certo em suas linhas gerais e, mesmo hoje, trinta anos depois, embora com uma inflação acumulada de 1.000%, 1 real, que não é mais a nota verdinha, mas a moeda bimetálica, ainda compra uns três chicletes. Desconfio que o seu Onofre não esteja vivo para ver o milagre, pois teria hoje quase 110 anos; mas ele viveu além dos seis meses fatídicos, claro.
Que bom.
Ainda teríamos um período meio caótico de dupla circulação de reais e cruzeiros reais até meados de setembro. Essa dupla circulação deveria ter terminado antes, mas a falta de moedas acabou fazendo com que o BC prorrogasse o prazo de recolhimento dos cruzeiros. Tornou-se comum, naqueles meses, pagar em reais, estalando de novos, e receber como troco um punhado de cruzeiros amassados. As pessoas, no geral, não gostavam de dar os reais novinhos e receber de troco cédulas de cruzeiro encardidas. Às vezes até reclamam, mas não havia moedas suficientes.
O real veio, viu e venceu, por mais que o seu meio circulante (o conjunto de cédulas e moedas) fosse feio. A segunda família de cédulas seria incompreensivelmente mais feia, mas são as peças que o destino nos prega: o de que uma série provisória e feita às pressas acabasse sendo mais interessante que a série definitiva, pensada e redesenhada.
(2023, editado)
Bitucas
Um passeio de maria-fumaça com rodízio de churrasco é algo que une o útil ao agradável. Certeza que é possível fazer um churrasco na fornalha, se devidamente adaptada.
* * *
Deus vendo a Torre de Babel:
— Que gente chata! Preciso me livrar deles.
Deus viu que era roubada e achou ruim. Confundiu-lhes as línguas e criou a escola de idiomas, onde ninguém aprende nada direito.
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Roubado da Internet
Um napolitano duelou catorze vezes para provar que Dante era mais poeta que Ariosto. No leito de morte, o confessor pediu ao napolitano, como penitência, que reconhecesse a superioridade de Ariosto. “Padre”, respondeu o moribundo, “para lhe dizer a verdade, eu nunca li Dante nem Ariosto”.
Do lado dos católicos
Curzio Malaparte
Os democratas-cristãos erraram em me torcer o nariz, em me considerarem um escritor satânico, um poeta maldito, um inimigo dos papistas. (Não sou papista, é verdade: não pelo meu instinto ruim, mas porque é antipapista toda a história da literatura e do pensamento político e científico italiano.) Mesmo assim, sempre me bati, toda vez que houve ocasião, em defesa do nome católico. Eu estava em Cracóvia, na Polônia, em janeiro de 1942 (Cracóvia era a base ferroviária do corpo expedicionário italiano na frente russa), e um dia, com outro oficial italiano, fui almoçar num restaurante polonês. A nossa entrada no restaurante, lotado naquele momento, suscitou surpresa enorme nos funcionários e nos clientes, quase um pânico, mas, num primeiro momento, não fizemos caso. O almoço foi excelente, e fomos servidos com todas as considerações, com muitos sinais de respeito e simpatia, pelos garçons e até mesmo pelo dono do lugar.
Estávamos no queijo quando entrou um sargento alemão, acompanhado por dois soldados armados da cabeça aos pés. O sargento se dirigiu a mim e me disse: “Senhor capitão, o senhor e o tenente não podem frequentar este lugar. Por tal, peço-lhes que saiam imediatamente”. Perguntei ao sargento por que não podíamos frequentar aquele restaurante: “Porque é um restaurante polonês”, me respondeu o sargento, rígido na posição de sentido: “Os senhores oficiais e os militares de qualquer patente das forças armadas do Eixo não podem frequentar lugares reservados exclusivamente aos poloneses”. Eu agradeci ao sargento e lhe assegurei que sairíamos imediatamente, depois de pagar a conta, e o sargento bateu os calcanhares, fez uma saudação ampla e se foi.
Voltei-me, olhei em volta e vi que todos, clientes e garçons, estavam imóveis, à espera de como agiríamos. Entendi, num piscar de olhos: estava em jogo o prestígio do exército italiano, o prestígio da Itália. Se nos levantássemos de repente, se saíssemos de repente, aqueles poloneses, clientes e garçons, e logo toda a cidade, todo o povo de Cracóvia, pensariam que a Itália não era aliada, mas serva da Alemanha, que os oficiais e soldados italianos estavam submetidos aos alemães, que não contávamos nada, que éramos instrumentos ridículos de Hitler e, o que era pior, cúmplices passivos da sua política racista burra no que se referia ao povo polonês, considerado e tratado pelos alemães como um povo de raça inferior, com o qual, para que não nos desonrássemos, deveríamos evitar qualquer contato.
Dirigi-me então ao dono do lugar e perguntei se ele não tinha um bom doce, um bolo polonês, mas polonês de verdade, porque, como italianos, gostávamos de tudo que fosse polonês. Os rostos ao nosso redor se iluminaram; o dono correu, os garçons nos olhavam sorrindo, os clientes tinham os olhos úmidos de lágrimas. Um pouco depois, o dono do restaurante trouxe à mesa um bolo magnífico feito de trigo sarraceno, ameixas, mel e creme, regado com alasz: o dono encostou no bolo um fósforo aceso, e o alasz pegou fogo. Cortei o bolo em muitas fatias, que ofereci aos clientes mais próximos à nossa mesa, pedi alasz para todos, e assim comemos e bebemos, alegres e felizes. Enquanto tomávamos o café, entrou um tenente alemão, acompanhado pelo sargento de sempre e pelos dois soldados armados dos pés à cabeça. “Sinto muito”, disse o tenente alemão, “mas sou obrigado a repetir a ordem de que saiam imediatamente deste lugar”. Agradeci ao tenente, assegurando-lhe que sairíamos o quanto antes, depois de bebermos o café, e o tenente bateu os calcanhares, fez uma saudação ampla e se foi.
Eu precisava começar tudo de novo: se saíssemos na sequência, os poloneses poderiam pensar que o tenente alemão nos tinha mandado sair. Pedi, por isso, outro bolo, outra garrafa de alasz, ofereci a todos uma fatia de bolo e um copinho de alasz e finalmente pedi a conta: pagamos, deixando na mesa uma gorjeta generosa e saímos envolvidos pelo respeito comovido e pela simpatia de todos, clientes e garçons. Mas, na porta do restaurante, nos esperava o sargento alemão com os seus dois soldados e, na calçada oposta, o tenente estava empertigado. Descorríamos entre nós, caminhando e, talvez por conta da comida apimentada, ou do vinho, ou do alasz, ou do frio polonês, nos deu vontade (como dizer?) de urinar. Eu teria dito “fazer pipi”, mas os soldados não fazem pipi, os soldados urinam. Fazer pipi é coisa de crianças e de mulheres, não de soldados, e se eu dissesse que um capitão e um tenente italianos, na Polônia ocupada pelos nazistas, estivessem com vontade de fazer pipi, em vez de dizer que tinham vontade de urinar, aposto que os bem pensantes de sempre protestariam, gritando que eu insultei o exército. De qualquer maneira, a pouca distância de nós havia um mictório com quatro lugares: nos dois da esquerda estava pendurado um cartaz, em alemão, informando serem aqueles “Reservados ao poloneses”, e, nos dois da direita, outro cartaz, “Reservados aos alemães”. Naturalmente escolhemos, por simpatia, urinar com os poloneses.
O povo italiano é amigo tradicional do povo polonês [2], e se, naquele dia, o meu companheiro tenente e eu escolhemos urinar com os poloneses, não fomos movidos por desprezo à Alemanha e ao seu povo, mas por simpatia pela Polônia, pela nobre, infeliz e corajosa Polônia, tão duramente oprimida por Hitler. É uma política errônea, mas o coração dos italianos está sempre com os fracos e com os oprimidos, nunca com os prepotentes. Enquanto fazíamos o que já se sabe, ouvimos, pelas costas, a voz seca do oficial alemão: “Senhor capitão, o senhor e o tenente não podem urinar nesse lugar. É proibido”. Voltei-me e, sem interromper o procedimento, perguntei ao oficial alemão por que era proibido. “Porque esse lugar está reservado aos poloneses”, me respondeu, “e o senhor e o tenente não são poloneses”. Rebati: “Está certo. Não somos poloneses. Mas também não somos alemães. E, na dúvida, escolhemos urinar com os poloneses”. O tenente respondeu, com voz áspera, que, na dúvida, deveríamos estar com os alemães, que eram aliados dos italianos, e não com os poloneses. “Está certo”, respondi-lhe, “mas os italianos, como os poloneses, são católicos e, por isso, urinamos com os católicos”. O tenente alemão bateu os calcanhares e se foi, furioso.
Naquele dia, nem eu e nem o meu companheiro tenente pensamos em arvorar-nos paladinos da Igreja Católica: pensamos apenas em dar uma pequena lição de dignidade, de inteligência e de respeito humano àquele tenente alemão e a todos os nazistas que, de maneira burra, oprimiam os infelizes e generosos poloneses. Mas hoje, tantos anos depois [1954], àqueles democratas-cristãos que nos seus jornais e nos seus círculos escrevem e falam de mim como se eu fosse um escritor satânico, como homem vitandus [1], eu gostaria de lhes perguntar quantos deles, naqueles anos, faziam pipi com os católicos. Não pretendo faltar com respeito a ninguém, mas aposto que muitos, muitíssimos democratas-cristãos, naqueles anos, faziam pipi com os alemães.
* * *
[1] N. do T.: os excomungados pela Igreja Católica dividem-se (ou dividiam-se) em dois grupos: os vitandi, a serem evitados, e os tolerati, que eram, obviamente, tolerados.
[2] De fato, o poema que deu origem ao atual hino italiano faz uma breve referência à Polônia, enquanto italianos e poloneses se opuseram ao poderio austríaco:
Son giunchi che piegano
le spade vendute:
già l’aquila d’Austria
le penne ha perdute;
il sangue d'Italia
bevé, col Cosacco
il sangue polacco:
ma il cuor le bruciò.
Embora essa estrofe esteja, hoje, fora da letra oficial. O hino polonês também faz referência à Itália: a Mazurek Dąbrowskiego (Mazurca de Dabrowski) diz, bem no refrão, que foi mantido mesmo sob o comunismo:
Marsz, marsz, Dąbrowski,
Z ziemi włoskiej do Polski.
Za twoim przewodem
Złączym się z narodem.Marcha, Dąbrowski,
Da Itália à Polônia,
Sob o teu comando,
Seremos Nação.(tradução adaptada da Wiki em português)
Quando dizia que italianos e poloneses são povos que caminham juntos, Malaparte não brincava.
Extraído de Battibecco (edição Vallechi, 1967), pp. 275-8. Tradução minha.
Retratos provincianos em três por quatro
Nestes tempos bicudos e indigestos, às vezes me dou uma pausa. Observo tipos curiosos ou relembro os que já vi pela rua.
Um deles é um músico. Velho, muito velho, que anda quase arrastando a bunda no chão, mas pinta o cabelo de preto corvino e tem jeito de tia velha. Ele diz que flana. Está sempre na rua, na quadra do prédio onde vive com um poodle, passeando ou conversando com a moça que varre a calçada de outro prédio do mesmo quarteirão. Dizem as bocas venenosas que é gay. E daí? Um velho de noventa e poucos anos faz o que bem entende. De fato, tem um olhar estranhamente guloso.
O cocainômano de vasta cabeleira é um tipo que transita no jet set e no submundo deste; sabemos que a cerca entre ambos não tem arame. É uma mistura de Palmirinha e Mozart. É chef de cozinha e, quando não polvilha quitutes, polvilha o nariz. Organiza orgias e é sommelier de rosca. Tem dois livros publicados: um sobre sua viagem à Grécia e outro sobre doces caseiros. Diz que Penélope, a de Ulisses, não resistiria se lhe oferecessem um ménage. É bon vivant e ama flutuar pelos salões locais, onde reina com piadas sujas e trocadilhos duvidosos.
O ex-diretor-presidente do pastifício, podemos vê-lo no bairro nobre aos finais de tarde, quando sai para caminhar com um cocker. Coitado do cocker cilíndrico, que precisa acompanhar a marcha desesperada do ex-executivo em trajes de ginástica. Está sempre coçando o nariz. Quando não está nas reuniões do orfanato de que é patrono, vai a Campinas, a festinhas de suingue. É um homem de cãs e discreto.
O economista, formado na Unicamp, é roliço, meio croquético, e fala empolado, mas não apita nada. Tem mais de sessenta e vive com a mãe. Dá conselhos às vizinhas sobre aplicações e poupança e todas suas previsões nascem mortas. Mas ele sempre tem uma desculpa na ponta da língua: “as conjecturas, as conjecturas!”. O jornaleiro, quando o vê, se abaixa atrás do caixa. Não é raro ver o economista tomando sol na praça e conversando com os mendigos. Sobre investimentos.
(2015 ou 2016, editado)
O tempero do churrasco grego
Para ir de casa ao trabalho, no começo da primeira década do século que corre, eu fazia um trajeto que me obrigava a subir a General Carneiro até o Pátio do Colégio, logo cedinho, por volta das sete. Era o caminho diário: descer do ônibus no Parque Dom Pedro e subir a ladeira para pegar outro ônibus, no Pátio.
Os camelôs sempre estavam montando suas barraquinhas e tendas com desleixo matinal, em silêncio. Naquela manhã específica não tinha sol; posso jurar que era um dia de inverno, mas sem garoa.
No meio daqueles movimentos, lentos, mas que se viam por toda parte, dois elementos, com ganchos de ferro, levantaram a tampa de uma boca de lobo. Diminuí o passo para ver o que faziam.
Com a tampa de concreto pousada na calçada, os homens tiraram de dentro do bueiro algo comprido, embrulhado em folhas de jornal. Ainda era comum ver folhas de jornal e seus reúsos naquela época. De dentro do casulo de jornal emergiu, em toda sua glória, um espeto de um metro e meio de altura, que segurava uma arroba de carne possivelmente bovina e banha, sobras do dia anterior. Sem a menor cerimônia, os dois elementos encaixaram o espeto na máquina de churrasco grego, acenderam o gás e ligaram a tomada no fio que vinha de uma loja de quinquilharias.
As folhas de jornal, o vento as levou ladeira acima.
(2022, editado)
Mortos fictícios
João tomava cuidado para não se repetir e ser pego em flagrante. Antes de dar a desculpa definitiva, consultava as suas anotações numa agenda com capa de couro preto para não matar alguém que já tivesse matado. A cara de contrição não precisava mais de ensaio; João cuidava apenas para não parecer muito feliz, pois no geral a desculpa era pretexto para ficar em casa, sem fazer nada, ou fazendo algo do seu interesse. Como tinha apenas mãe viva e família pequena, toda de fora da cidade, criou vários parentes para matar conforme a necessidade.
Fez isso muitas vezes depois de 1978, ano em que matou o primeiro, tia Vanda, para escapar da festa de Natal da empresa. As anotações começam sucintas: “Tia Vanda Frondizi. 22 dez 1978. Coração”.
Pela evolução das anotações, vê-se que João preocupava-se com a verossimilhança do que contava. A prima Dolores, que foi usada como desculpa para fugir de um treinamento comercial de três dias em Serra Negra, tem um registro mais detalhado: “Dolores Albión, prima-irmã por parte de pai. 35 anos. Atropelamento em Santos, pela manhã. Ônibus. 20 agosto 1983”. Na página seguinte, uma árvore genealógica frondosa e frutífera, que entrelaça os Albión, do seu pai, e os Frondizi, da sua mãe. Dona Gemma Frondizi, que era filha única, ganhou doze irmãos; seu Antonio Albión, de dois, passou a ter dez. Com uma média de três filhos por casal, João tinha 88 parentes próximos para matar em caso de necessidade.
No final do ano, eram dois mortos: o peru da ceia e um parente fictício, sempre para escapar das festividades corporativas natalinas. Quando tinha vontade de escapar da ceia em família, matava um colega de trabalho, o que não precisava de muitos detalhes com relação à vida do morto, mas com o próprio dia do funeral, como vemos nestas anotações de 1987: “Augusto do Financeiro. 24 dez 1987. Casado, 50 anos, dois filhos. 10-15h velório. 15h30 enterro”.
Nos primeiros anos, os assassinatos falsos se concentravam nos finais de ano. Após 1991, João, agora mais velho e com menos paciência, começou a matar parentes e colegas na Páscoa, no Dia do Trabalho, no Carnaval. Em 1993, matou 13 pessoas. Aos colegas e parentes, provavelmente a onda de mortes começou a tomar ares de esquisitice. Alguém deve ter dito a João:
— Poxa, mas você gosta de um cemitério.
A situação começa a ficar estranha em 1995. Segundo as anotações da agenda, João mandou rezar uma missa de sétimo dia para Preziosa Frondizi, tia fictícia. No ano seguinte, nas datas dos enterros falsos, João ia aos cemitérios; três visitas a necrópoles estão registradas na agenda, naquele ano.
Durante 1999, a situação econômica de João apertou-se, mesmo solteiro e sem filhos; vivia apenas com o salário mínimo da aposentadoria. Não se fez de rogado: matou-se com um atestado de óbito falso. Infarto do miocárdio. Recebeu o seguro de vida e mudou-se para Nueva Helvecia, no Uruguai. Tinha fim ali a carreira do maior assassino fictício que de que já ouvi falar, com 72 mortes nas costas.
Achei a agenda num banco de ônibus, quando, de férias, ia de Montevidéu a Colônia do Sacramento. Pode ser que tudo não passe de ficção de uma mente doentia.
(2016, editado)
Essas memórias do real. Somos colegas de geração (e região, descubro), e nossas memórias são muito semelhantes. Boa lembrança e boa newsletter, caro.
Ao ver essa foto do churrasco grego automaticamente me subiu o cheiro de imbira e vinagrete. Incrível.