Cinzeiro de Latão 31
Editorial (?) / Os velhos e as lideranças desossadas / Bula / Bitucas / Irreparabile fugit tempus / Lincoln gay
Cinzeiro 31, 27 de julho de 2024.
Editorial (?)
Faz uns vinte dias que recebi uma mensagem do escritor Martim Vasques da Cunha no meu privado do Substack, me perguntando sobre uma possível colaboração com o Não é Imprensa, no espaço Interlúdio. Pois hoje saiu a minha primeira publicação lá. Ajude o cronista brasileiro, que vive num país à beira da inanição intelectual, e dê uma xeretada na seleção feita pelo Martim.
Os velhos e as lideranças desossadas
A política faz tão mal quanto a exposição à radiação, mas, às vezes, é impossível fingir que não está acontecendo nada. A radiação arrebenta com o nosso ADN; a política, na forma atual, arrebenta com a cognição e com o raciocínio. Vivo bem ignorando a política e só abandono a minha letargia quando farejo um tema bom, que me permita dar cacetadas e rir um pouco. A saída teatral de Joe Biden da disputa pela reeleição nos EUA é uma dessas janelas. E por saída teatral entendo aquela em que o cara está fazendo papelão no palco e o tiram de lá com uma bengala, como nos desenhos animados.
A arregada de Biden era previsível. O ar de quem parece que não sabe o que está acontecendo ficou patente depois do debate com Donald Trump. O olhar vazio, ausente, a dicção titubeante, as caminhadas incertas a destinos invisíveis. Não que Trump seja muito mais novo: ele tem 78 contra os 81 de Biden. Três anos de diferença entre homens provectos não é lá grande vantagem, mas Trump, até onde se sabe, está com as faculdades mentais intactas, independentemente de tendências e gostos. Bernie Sanders, que foi pré-candidato democrata contra Hillary Clinton e contra o próprio Biden, tem 82, mas parece bem mais lúcido.
O intrigante não é Biden ter ficado gagá primeiro. Coisas da vida. O intrigante é que gente muito velha siga dominando a política e que nomes mais novos sejam deixados de lado; as lideranças não despontam ou ficam no limbo. Os democratas tiraram do bolso Kamala Harris, que não tem os sessenta (é quase adolescente perto desses dinossauros), mas é inócua: parece personagem do Zorra Total.
Não que eu defenda a ascensão dos jovens. Jovem, com exceções expressas, fala e pensa muita baboseira; é melhor que amadureça um pouco antes de chegar arrebentando tudo. Todo jovem é iconoclasta, de uma iconoclastia burra e cega. Mas por onde anda o pessoal entre os quarenta e os sessenta, as lideranças de meia-idade? E esse fenômeno, a falta de renovação, não se limita aos States.
Uma vez, o jornalista Ariel Palacios escreveu que a Argentina era uma necrocracia, ou algo muito próximo disso, porque as eleições eram decididas por quem conseguisse atrair o capital político dos defuntos, que dominavam (e ainda dominam em parte) a vida política nacional. Na época, a referência era a Perón, o morto que nunca morreu, à sua primeira esposa, Evita, cujo cadáver viajou mais que muito arrivista, e até a Raúl Alfonsín, cujo filho, Ricardo, tentou se eleger presidente. O Brasil não sofre disso. Quando se matou, Vargas levou o getulismo consigo, embora muitos tenham tentado desfilar com o cadáver em busca de prestígio, inclusive alguém ora morto que, por sorte, também caiu no olvido: Leonel Brizola. O problema tupiniquim não é a necrocracia que afeta o nosso vizinho transplatino, mas é a mesma questão da política americana: as lideranças envelheceram e não criaram sucessores; o projeto de poder deixou de ser partidário e se tornou pessoal. Ficam no poder, ou no parapoder partidário, como os monarcas ou os ditadores: enquanto tiverem força para dar ordens piscando.
Lancemos um olhar ao brejo da política nacional. Lula, não obstante o autoatribuído priapismo, claudica, e não há alguém com o mesmo carisma que o possa suceder. E nem viagra que o salve: a murchança, política e sexual, é o destino. Fernando Haddad tem o magnetismo de um vidro de picles vazio. Pode ser que os seus ex-alunos da USP o achem opção para algo. A morte de Lula, salvo força maior, será o fim do PT. Não existe uma liderança forte ali dentro. O PSDB conseguiu virar um espantalho e perder o Estado que dominou por quarenta anos, se contarmos o período do PMDB em São Paulo antes da fundação do tucanato, apesar do hiato de Quércia e Fleury Filho. A última grande liderança jovem dos tucanos foi Geraldo Alckmin, que já nasceu velho para o eleitorado. Além do mais, o PSDB nunca conseguiu perder a pecha de “partido paulista”, o que é uma ofensa para o resto do país, que detesta São Paulo. Aécio Neves tucano é quase uma incongruência, embora o sul de Minas seja basicamente a extensão da área caipira paulista, só que com menos influência italiana. Covas, provavelmente o último (e único) tucano de visão, criou Geraldinho da lama do vale do Paraíba: deu musculatura a um mamulengo feito de varetas de bambu. Fernando Henrique, fetichista, nunca saiu do sonho molhado de ser primeiro-ministro num Brasil parlamentarista presidido por Lula, que farejou o engodo e mandou o sociólogo às favas. Jair Bolsonaro é uma reação ao fastio que o PT causou depois de três governos e meio: está mais para azia do que para liderança. Uma azia com refluxo, mas nada que um sal de frutas não controle.
Até surgiram algumas lideranças jovens: Ciro Gomes, Fernando Collor e o já citado Aécio Neves, mas os cobriu o pó das horas: são já senhores e inúteis, como outros tantos. Collor foi o mais bem-sucedido, e também a maior decepção.
A inépcia do PSDB em São Paulo, Estado e capital, criou algumas das figuras mais inócuas e estranhas da política estadual, que serão lembradas apenas porque têm os nomes em placas de inauguração, enquanto os mendigos não as arrancarem para vendê-las no ferro-velho e fumar crack com o lucro obtido. Rodrigo Garcia é uma; Ricardo Nunes é outra. Os nomes são intercambiáveis: para mim, são quase a mesma pessoa. Outra liderança do tipo era Bruno Covas, o falecido prefeito, que se tornou estadista e o melhor prefeito que São Paulo já teve porque morreu no cargo: foi mais Neves que Covas. Ganhou um castigo amargo: virou nome de estação de trem. A hepatite tucana em São Paulo permitiu a ascensão de Tarcísio de Freitas, que, antes de 2019, era barata de escritório; gosta de fazer o tipo gerentão, à la Dilma.
No âmbito externo, Emmanuel Macron e Olaf Scholz são lideranças evisceradas: são burocratas. Macron é nervosinho, mas, no fim das contas, é um gerente metrossexual de banco cuja clientela é rica, cujo maior mérito como presidente da França foi ter se metido numa briga besta com Bolsonaro. François Mitterrand e Helmut Kohl parecem titãs perto desses abantesmas. Pedro Sánchez tem tanto carisma quanto um vendedor de enciclopédia. A burocracia da União Europeia é ótima em criar líderes de mentirinha: Josep Borrell, Ursula von der Leyer e António Guterres são exemplos. A estrutura da UE é um retiro de luxo para políticos ligados ao establishment, mas incapazes de levantar votos, mais ou menos como o Banco do Sul, em que meteram madame Rousseff. Guterres, não obstante a cara de cachorro cansado, foi primeiro-ministro de Portugal, superando seus pares de UE, embora, em magnitude, isso equivalha a ter sido gerente do Walmart ou prefeito de Taboão da Serra.
Os velhos estão aí, e a sua presença impede o surgimento de lideranças fortes. São Paulo é o exemplo: surgirá uma liderança burocrática, uma liderança de corredores, de sangue de barata, de canetas e carimbos. A política, como tantas outras atividades, está sendo bundalizada e entregue aos hominhos, que são ácaros perto de um Juscelino Kubitschek, de um Carlos Lacerda. Até Sarney e Maluf, que subiram na vida presos à costura das fardas, pareciam ter mais sangue nas veias do que esses bonecos. Ou ainda ficará entregue às mulherzinhas, como no caso dos EUA e Kamala. Isso se ela não perder para Trump, velho, mas ainda combativo e carismático, político à moda antiga.
Ao que parece, os últimos vertebrados da política são os da direita, o que não necessariamente é bom. Giorgia Meloni, por exemplo, vale Matteo Renzi, Mario Draghi, Paolo Gentiloni e Giuseppe Conti juntos e ainda sobra uns trocados para um Aperol spitz na Piazza San Marco. Javier Milei surgiu numa Argentina ainda com a presença pesada de Cristina Kirchner, carismática, cafetina do cadáver de Néstor, embora Alberto Fernández, o seu testa de ferro, era um desossado, um apparátchik do peronismo kirchnerista, um funcionário babão. Tentaram emplacar Sergio Massa, ministro da Economia num país economicamente devastado, que tem jeito de dono de kiosco duvidoso. Mas a direita continua assombrada pelo histrionismo e pelo populismo, como a esquerda clássica, e a sua tendência é definhar.
Porém, o impasse pode ter um lado bom: os líderes desossados, reduzidos a funcionários de cartório, têm o carisma de uma anchova, o que nos livra de governos infinitos, ou em alternância com paus mandados, e da malta que gosta de os idolatrar. Todo horror tem um lado positivo.
Bula
A de remédios, não as papais. Há um burburinho sobre a eventual introdução da bula digital em substituição à tradicional, o folheto odioso que é quase a Bíblia impressa em uma folha A5. Como qualquer mudança ou novidade entre multidões pouco inteligentes, a coisa toda causa uma grita desnecessária dentro de cubículos. É curioso, porém, ver como os argumentos favoráveis e contrários à bula digital acabam por se anular.
A ideia é colocar um QR code na embalagem dos medicamentos com o qual, munido de celular, o paciente conseguiria baixar ou ler a bula no aparelho. Com a pauta rondando a Anvisa, órgãos de defesa do consumidor e parte da classe médica clamam pela complementaridade: ou seja, que as duas modalidades de bula coexistam, que continue vindo com o remédio o origâmi para consulta e que haja uma versão on-line. Espero que em tipos legíveis. Um dos argumentos contra a existência apenas da versão eletrônica é que ela não é acessível a parte da população, principalmente os excluídos digitais e os idosos.
Os que defendem a extinção da bula de papel se apoiam nos argumentos de que ela precisa ser substituída com muita frequência por conta de alterações no remédio em si ou, por exemplo, na troca do responsável técnico, como argumenta, com razão, a Profa. Dra. Patrícia Mastroianni, da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp. Outro argumento de peso é a diminuição na geração de resíduos, com menos descarte, lembrando que o remédio vem embalado, com plástico, vidro e papelão, dependendo do caso.
Bazófias. Os excluídos digitais são incapazes de ler a bula, pois é comum a sobreposição da exclusão digital ao analfabetismo funcional. Os velhos não vão ler bula alguma, porque, na de papel, eles não enxergam a impressão, minúscula, e, para ler a digital, não conseguem abrir o leitor de QR code no celular.
Adotar ou não a bula digital, em companhia com a de papel ou isoladamente, é despejar um caminhão de areia no Saara.
Bitucas
Durante a minha breve estada na Itália, redescobri uma velha paixão: a moeda de 1 euro. E por quê? Além de ser o valor normal para o uso dos banheiros, ela tem praticamente as mesmas dimensões da nossa moeda de 50 centavos, a minha preferida ao toque dos dedos, embora valha doze vezes menos. Ah, a relação entre os dedos e as moedas é praticamente sexual. A moeda de 50 centavos (ou a de 1 euro) proporciona a mesma sensação de acariciar um clitóris.
* * *
Portugal foi o único país que decretou luto oficial pela morte daquele ditador alemão, o Dodô, que fez um tour pela Europa no começo dos anos quarenta. Li algures. Indagado, o doutor Salazar disse: “Era chefe de Estado e era ser humano”, algo assim.
Falando em Salazar, justo no seu début nesta news, quem o atrapalhou durante um tempo foi Rolão Preto, de prenome Francisco. Ideólogo do nacional-sindicalismo português, Rolão Preto tentou arrebentar com o regime salazarista pelas bordas, sem sequer uma cuspidela. Neutralizado e impotente, Rolão Preto se exilou em Espanha, mas, no final dos anos quarenta, voltou a Portugal, ereto, de cabeça descoberta, sem vergonha alguma, e participou até o talo da vida política do seu país. Ninguém penetrou melhor a alma lusa que Rolão Preto, como bem disse o muito sábio doutor Bueno, amigo meu.
* * *
— Talvez você não tenha entendido a obra porque ela subverte o tradicional.
Ninguém é obrigado a entender ou aceitar qualquer tipo de subversão estética. Subversão é assunto para as forças de ordem.
* * *
Dois índios estão à beira de um rio. Corria o século XVI, e ainda havia alguma ressalva com uns homens cobertos de pano preto que apareceram no lugar.
— Cacique Tapiberaçu fez oca nova.
— Pois fez.
— Oca grande.
— Pois é.
O índio que começou o diálogo aponta a oca, que surgia, imponente, a leste do Tamanduateí.
— É mó oca.
E assim nasceu o topônimo de um dos bairros mais tradicionais de São Paulo.
* * *
Reclamou de uniforme de atleta olímpico, já sei que a pia está cheia de louça. Os pratos de domingo ainda estão lá, com a sujeira servindo de repasto aos fungos.
Irreparabile fugit tempus
Em 1996, a finada Rede Manchete, canal 9 de São Paulo, começou a transmitir a novela Xica da Silva. A Manchete tentava roubar a audiência da Globo, mas a produção era bem inferior. Gostemos ou não da Globo, as suas novelas são bem produzidas.
Lembro-me de que as pessoas consideravam Xica da Silva uma espécie de Cine Privé* continuado, ou seja, um pornô soft com historinha sem graça. O negócio da produção televisiva em questão mesmo era ver a Taís Araújo, com os seus dezessete anos, mostrar displicentemente um bico de peito ou uma forma mais arredondada das suas nalgas; ou mesmo os ombros nus. Tudo intercalado com vosmecê pra cá, vosmecê pra lá.
Qual não foi a minha surpresa, por estes dias, quando um desses sites que faz jornalismo de listas citou a novela como “a primeira com uma protagonista negra”. Jornalismo de listas é sempre deprimente, como a impotência ou a calvície.
Nem sei se de fato isso condiz com a realidade, mas vejam vocês como o tempo deforma o nosso juízo e a opinião pública. Xica da Silva foi alçada de novelinha que velhões cansados acompanhavam com a esposa apenas para ver uma peitolinha e não incorrer em sanção conjugal a “produção artística” lacradora.
* Cine Privé era nome do espaço de cinema adulto softcore que a Rede Bandeirantes, canal 13 de São Paulo, levava ao ar, tarde da noite, com produções B do gênero.
Lincoln gay
Foi lançado um filme que, digamos, questiona a heterossexualidade de Abraham Lincoln, presidente dos EUA durante a Guerra Civil, o colocando como alguém que ama muito os seus iguais. Lincoln teve um papel crucial na história do seu país; os grandes homens o são pelos feitos em prol do país e da comunidade. Se ele era ou não bissexual, pouco importa. Na verdade, não importa nada. Leio, em outra fonte, que tal alegação nem faz sentido, que não há provas históricas que sustentem a teoria de que Lincoln cortasse para o outro lado. Será que é por isso que o homenagearam no penny?
Acho que o diretor do filme é o saudoso Seu Peru, que, envolto numa écharpe colorida, diz, entre risadinhas: “Pelo menos levei mais um pra irmandade.”