Cinzeiro de Latão 32
Velório na sala / Bitucas / Lavorare stanca. E troppo / Extorsões literárias
Cinzeiro 32, 3 de agosto de 2024.
Velório na sala
Durante a minha infância, o meu pai teve comércio: uma avícola, tipo estabelecimento já desaparecido, como sapataria ou sauna que é apenas sauna, e que não deve ser confundido com a avicultura. Avícola é o estabelecimento que merca carne de frango apenas, um açougue de frango. A avícola do meu pai teve alguns endereços antes do fracasso total; os dois primeiros eram bem próximos de casa.
O segundo salão que alugamos era num prédio orgânico, que foi sendo feito aos poucos, algo comum na periferia de São Paulo nos anos setenta, onde tudo crescia precariamente e sem a menor fiscalização. Era um dédalo de cômodos, salões e casinhas interligados por corredores estreitos. Não havia dois cômodos com o mesmo revestimento: cada pedaço tinha pisos e azulejos que pareciam restos de demolição ou que tinham saído de um saldão de loja de material de construção. Sobre dois andares de cômodos caóticos ficava a casa dos proprietários, que tinham um boteco no maior salão do prédio, que ocupava a esquina. O salão onde estava a avícola precisava ser fechado por dentro e se saía dele por uma porta lateral, que dava para um corredor interno. Esse corredor escuro desembocava no portão de madeira que dava para a rua. Porém, se alguém caminhasse no sentido contrário ao do portão, desembocava num pátio estreito e comprido, entre paredões, que era o quintal de uma casa. Essa conformação fazia com que o quintal recebesse pouca luz, apenas no meio do dia, deixando chão e paredes sempre meio úmidos.
Na casa do pátio morava a irmã da proprietária do prédio com o pai, o marido e os filhos. Não era raro sairmos da avícola para ir ao banheiro (no corredor e compartilhado com o bar) e dar de cara com uma das crianças, que estavam sempre meio sujinhas e com os olhos claros arregalados.
Um dia, o pai da proprietária do prédio morreu — homem já na casa dos noventa. Tiveram a ideia de velar o morto na sala da casa. Parece que em alguns lugares existe ou existia esse costume, mas não em São Paulo, onde estávamos. Eu, pelo menos, não tinha visto isso até então, embora, uns meses depois, uma vizinha nossa foi velada na casa da irmã, na mesma rua, só que mais para o final da quadra.
A família do morto era grande. Por trás da porta, o rumor quase incessante de passos arrastados, gente que tinha vindo de longe quando soube da morte do patriarca, até mesmo do Nordeste, origem de todos, exceto da geração dos netos, nascidos já em São Paulo.
Eu, menino, sentado num banco, escutava os passos, um ou outro soluço de choro e comentários abafados. O meu pai me disse, não sei por que: “Não faça barulho… é preciso respeitar a dor dos outros. Depois de fechar, vamos lá cumprimentar as pessoas, e você se comporte”. Detalhe: eu estava quieto.
Baixamos a porta e ainda era dia, por conta do horário de verão. Em vez de pegarmos o corredor e sairmos, fomos para o outro lado. No pátio havia vários parentes: adultos cansados, fumando, e um grupo de cinco ou seis crianças amuadas, caladas à força, sentadas num canto. Entramos eu e meu pai na sala abafada e escura; ele à frente; atrás, o topo da minha cabeça mal chegava ao seu ombro. As mulheres falavam baixinho, os homens estavam amuados pelos cantos disponíveis no ambiente. O meu pai se curvava para cumprimentar quem estava sentado e passava para o próximo. Eu fazia o mesmo, sem precisar me abaixar e sem ter a menor consciência do que estava fazendo: apenas olhava para pessoa e lhe dizia “meus pêsames”. Alguns me davam a mão, outros me abraçavam e me molhavam com umas poucas lágrimas.
Quando terminamos de cumprimentar todos, o meu pai ficou de canto e olhou para o centro da sala. O que eu confundira com uma mesa estranha e alta era o caixão, apoiado em dois móveis que pareciam criados-mudos. Dentro do caixão, o velhinho que eu costumava ver tomando sol. Pálido e murcho. À sua cabeça, a armação de metal com o crucifixo de bronze, sem brilho; aos pés do morto, um candelabro com um círio. Uma das mulheres veio com uma caixa de fósforos e o acendeu. O dia começava a findar, e a luz não penetrava no quintal entre muros; a sala, antes da vela, estava já na penumbra. Uma luz baça tomou conta do cômodo: todos pálidos; quase tão pálidos quanto o cadáver.
Ficamos mais uns instantes. O meu pai em silêncio. Todos em silêncio. Fora, alguns pássaros davam os últimos trinados do dia, se preparando para dormir na árvore grande que havia na frente do prédio. No grupelho de crianças, uma chupava o nariz. Eram menores que eu, provavelmente não tinham ideia do que estava acontecendo.
Eu já tinha visto a morte outras vezes. Um tio-avô, o meu avô, algum vizinho. Mas sempre ela estava isolada na segurança dos velórios, no solo sagrado dos cemitérios, exilada do cotidiano. Como a cerca que separava o velório do Vila Formosa do Terminal Carrão. A morte, tão perto, não se misturava com a azáfama das pessoas indo para o trabalho, com o zunido dos trólebus. Ali não: ela estava dentro de casa. Ao redor do caixão, além das pessoas, os móveis, os bibelôs da estante, o lustre. O corpo iria embora; o resto ficaria. Como seria o depois? Uma lembrança pesada para um ambiente que costuma ser o centro da casa.
Fomos embora e por um bom tempo não consegui pensar em outra coisa. No dia seguinte, o carro do serviço funerário encostou na calçada, e puseram o caixão no carro. Observei o carro preto descer a avenida; não havia retorno, é claro. É sempre assim. Mas cada objeto presente naquela sala ficou marcado. Tantos anos depois, sou ainda capaz de os descrever e seria capaz de os reconhecer em outra estante. Um elefante de cerâmica, uma caneca esmaltada com uma figura grotesca defecando, um porta-retratos com a fotografia desbotada de umas crianças.
Não tínhamos vínculo com aquela gente. Tanto que, depois de um tempo, mudamos a avícola para um lugar mais longe e nunca mais tivemos contato direto. No máximo topávamos com eles na calçada, já que o ponto de ônibus era na frente do bar. A nossa visita foi protocolar, por uma questão de respeito. O meu pai nunca gostou de velórios e temas ligados à morte. Fomos embora sem dizer nada, mas nele também havia um mal-estar, a sensação de algo fora do lugar, de uma indigestão na alma.
Bitucas
Ditador só sai do poder quando morre ou quando o matam. Voto não dá fim em ditadura.
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Parece que Paulo Coelho, o autor brasileiro mais renomado no exterior, tem um livro chamado Onze minutos. Não vou ler livro do Paulo Coelho, cujo maior mérito são as letras que ele fez para o Raul Seixas, mas me disseram que os onze minutos tem relação com a duração do ato sexual. É um daqueles casos em que o trocadilho vem pronto: onze minutos é coisa de coelho.
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Kamala Harris não existe: são dois anões, um montado nos ombros do outro. O mais feio é o que mostra a cabeça com a peruca. Trump também não existe: é um agrupamento de três duendes chapados de cogumelo.
E lembre-se: é o seu voto, de Cabrobó do Norte, que vai fazer a diferença.
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Fulano é amigo do peito, como a angina.
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É tanta gente com o nome na boca do sapo que já tem lista de espera.
Lavorare stanca. E troppo
Uma ficção
Na repartição, volta e meia, aparece o doutor Furbini, ex-encarregado geral que deve estar aposentado há uns vinte anos, mas continua assombrando os corredores do Ministério. Aparece para pedir informações aleatórias e ter um motivo de ir lá. Detectamos a sua presença pelo som característico da sua bengala de alumínio: um taque metálico imediatamente seguido pelo tilintar de arruelas. Furbini é um grande exemplo de gente que se aposenta, mas, por não ter outro horizonte além do trabalho, fica orbitando ao redor dele, como assombração. O seu retrato está numa parede esquecida, onde fotos de todos os encarregados gerais estão dispostas em ordem cronológica; outro dia, o ouvi dizendo a dois visitantes, com algum orgulho, que os retratados antes dele estavam já todos mortos. A sua vida se resume ao tempo no Ministério; fora dali, ele é invisível. Chegou a escrever um livro sobre a história do ente, cujos exemplares ficam pegando poeira em uma sala.
Esse tipo de gente tem dois destinos: morrer ou orbitar ao redor do trabalho. Furbini, para a sua sorte, e o azar de alguns, optou pelo segundo.
Penso na minha relação com o trabalho: é de necessidade, de subsistência. Não consigo me aplicar com empenho real em nada. Tudo me parece tedioso, enfadonho e difícil. Sempre penso que não me pagam o suficiente para passar por certas situações ou fazer certos esforços. Claro que isso precisa ser dosado, ou eu não conseguiria me manter nos empregos; como preciso pagar contas, tenho, por necessidade, uma ampla tolerância, um cinismo prático que me garante a existência. Não consigo ver no trabalho, puro e simples, um fim. Pouca gente tem essa percepção e, talvez, essa sorte; sou daqueles para quem o trabalho é uma longa ponte entre os períodos de sono. Trabalhar é fisiológico como defecar. Não me deprimo: o salário que recebo me impede. E procuro viver bem os interstícios; por isso fico enervado quando me ditam agenda, quando me são impostos compromissos enfadonhos e tarefas despiciendas. É a maior ofensa de que posso ser alvo; o maior roubo que me podem fazer. O meu tempo livre é sagrado.
As pessoas que vivem para o trabalho podem ser de dois tipos: gênios inspirados ou imbecis limitados. Há uma grande tendência para o segundo tipo, mesmo nas profissões consideradas intelectuais.
Penso em quando me aposentar: se eu não morrer antes, terei um tempo exclusivo para vários nadas, ou para interesses diversos. A última coisa da qual vou querer saber é de trabalho. “Quien trabaja tiene mala sangre”, já diziam os nobres espanhóis, que sabiam aproveitar a vida criando anões de estimação para entretenimento, por exemplo. Eu, que não sou nobre, preciso trabalhar e sustentar la mala sangre de mis venas. Mas, depois do tempo regulamentar, que fique com ele quem dele precisar.
Extorsões literárias
O texto que se segue estava fermentando na minha cabeça havia muito tempo. Deve ter tido várias formas e frases de efeito várias antes de chegar à sua forma escrita, que ficou mofando meses num drive. Não há aqui pretensões científicas, é bom precisar; está mais para um chilique escrito.
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Vão já mais de quinze anos de quando o meu sogro me fez a pergunta maldita: o que é literatura? Na época, eu ainda tentava terminar um curso de Letras que levei no diletantismo mais puro e só discutia essas questões com os meus pares e sobre saltos altos. A pergunta me aturdiu por dois motivos: o primeiro foi a ter achado descabida. Como assim o que é literatura? Não era claro? Parecia-me que o cânone chancelado pela academia era a Literatura, com maiúscula. O segundo motivo foi que, além dessa explicação dogmática, eu não tinha outra.
A minha reação à questão nos meses que se seguiram foi tratar quem fez a pergunta como “não iniciado”. O meu sogro é um homem muito prático, para quem tudo deve ter uma utilidade ou não vale a pena; é uma Weltanschauung algo estreita, mas não condeno. Ele fez a vida com base nela e se deu bem. Por sorte, o curso de Letras acabou, e choquei os ovos de novos conceitos. O primeiro a eclodir foi a percepção de que a tal elite cultural é pouco cultural e muito ideológica. Gente que, num questionamento ad nauseam do status quo, escorrega na exaltação da “verdade” da literatura realista, “que põe a miséria dos sertões debaixo do nariz do leitor do Sul e do Sudeste”. Daí a parafilia com Guimarães Rosa e Graciliano Ramos; a academia rejeita Jorge Amado, pois “ele se vendeu”[1]. Para a doadora de diplomas, o que flutua fora do aquário não é literatura. Simples assim. É, no máximo, subliteratura.
Procurei algumas respostas técnicas para a questão. Não vou citar fontes apenas porque não me lembro e porque crítica literária é mais insossa que comida de hospital. Um dos críticos dizia que a literatura precisava ter estética e verdade ou uma das duas; outro aldrabão dizia que literatura era aquilo assim considerado pela sociedade intelectualizada. Ou seja: ninguém tinha certeza de nada, como eu.
A questão continuou me atazanando. Um fato que fui percebendo é que eu havia lido muitos livros de que não havia gostado apenas porque tinham a chancela da intelligentsia. Mas intelligentsia e literatura chancelada são cabeça e cauda do cão que corre atrás do próprio rabo [2]. De vez em quando ainda me forço a ler algo aclamado pela crítica para ter um juízo, como fiz com Torto arado; antes, mesmo não tendo gostado de certa obra, não apenas me forçava a gostar, mas a defendia de eventuais ataques: eu era um míssil teleguiado. E acreditei que me faltava a inteligência necessária para notar o valor da obra, afinal, ela era chancelada pela academia, por gente que entendia algo. A percepção mudou, embora a inteligência continue a me faltar.
Então, volta a pergunta: o que é literatura? Os mesmos anos que me deixaram cretino me deram uma resposta: literatura é tudo aquilo que foi escrito com intenção literária, por pior que possa ser. Aquela coletânea de contos da academia de letras de Itanhaém, amarelando num expositor giratório de banca de jornal, cheia de contos exaltando a cidade e a infância do escritor, “vivida entre o pé de manga, os terrenos baldios” e falhas ortográficas, também é literatura. Pode ser literatura ruim, de memorialismo rasteiro, personalista, mas é literatura. Que autoridade tem um professor universitário tem para dizer que não [3]? A elite cultural tem uma visão dogmática de literatura e a tenta impor, seja pela academia ou pelos rodapés que os jornais reservam aos domingos para o assunto. O ruim é que esse conceito se perpetua, pois a universidade forma os professores de língua e literatura que temos na escola, além de ter contaminado a imprensa especializada.
O problema de definir o que é literatura no Brasil é que ela sempre nos é apresentada com a questão de reflexão. “A literatura tem que fazer refletir sobre o sofrimento do povo” e a coisa toda vira um vale de lágrimas; às vezes a tal reflexão é claramente uma interpretação distorcida da obra e da realidade. É claro que a literatura realista tem que existir e precisa existir, mas não só ela. O conceito que se passa é que apenas a literatura de dedo em riste, que grita e desmaia, indignadíssima, é digna do nome. Por essa ideia aceita-se livros apenas pela intenção de denúncia, mesmo que eles sejam intragáveis e, vejam só, até mesmo mentirosos. Ou os aceitamos simplesmente porque o autor pertence a uma minoria, argumento que volta e meia é esfregado na cara do público. Quem se atreve a tecer uma crítica é adjetivado com os nomes feios da moda, com destaque para fascista e racista.
O que defendo é que o maior definidor de literatura é o gosto, seja coletivo ou individual. É comum frequentadores de livraria intelectualizados torcerem o nariz para os livros que estão na porta, geralmente “literatura comercial” ou autoajuda. Mas a “literatura comercial” não é algo que chama as pessoas, que tem apelo? Algo há ali que as atrai. Os livros mais vendidos que não são de autoajuda são de fantasia: vampiros, mundos fantásticos, histórias picantes para senhoras na menopausa. A literatura, para a maioria, é fuga da realidade. E o mesmo vale para o cinema: as pessoas querem ver o Rambo e os Vingadores, e não um cara passando fome na caatinga; as pessoas querem ler sobre a moça que gosta de transar amarrada, não sobre a família que cozinhou o papagaio. As pessoas não querem entrar em depressão; a vida já é chata demais. Quem lê Vidas Secas é estudante de Letras ou vestibulando; se não é nenhum dos dois, está também no seu direito. O que irrita é que tudo deva sempre ser tão sisudo, que rir seja sempre um desrespeito para com quem sofre. Se formos viver nessa toada, em duas semanas nos matamos todos.
É a sociedade que define o que é literatura, mas a elite cultural acha que se a sociedade não “reflete” sobre a sua condição pela produção cultural, ela é burra. Ou seja, para a elite cultural, quem não se sujeita ao crivo que ela estabelece é burro, ignorante, alienado.
A literatura de diversão precisa existir em companhia das letras mais sisudas. Uma não exclui a outra. É necessário, porém, que a nossa elite cultural tire essa máscara de sofrimento perpétuo, que descruze as perninhas, tire a mão do queixo e deixe as pessoas irem ao circo, se é o que elas querem.
* * *
[1] Tem algo a ver com Gabriela, Cravo e Canela e Tieta do Agreste terem virado novela da Vênus Platinada. Lembro-me bem de uma monografia que fiz na faculdade para uma disciplina cujo tema eram a segunda e terceira fases do modernismo. Comparei Vidas Secas, do Graciliano, e Seara vermelha, do Jorge Amado. Quando apresentei o projeto, o professor torceu o nariz, mas permitiu que eu continuasse. No final, ganhei um 9 e a seguinte explicação: “Tem mais Amado que Graciliano”. Não posso reclamar muito, pois o professor em questão era muito mais aberto que os seus pares.
[2] Inicialmente, a comparação aqui era com o uróboro, mas a relação explicitada não merece a sofisticação dessa metáfora.
[3] A minha maior decepção com o dogmatismo acadêmico foi quando um professor me disse que Giovannino Guareschi não era literatura. Embora naquele momento, uma aula inicial, o sentido disso me tenha fugido, anos depois ficou claro: Guareschi não comungava o mesmo credo político que outros autores italianos celebrados pela academia, como Calvino e Pavese; não só: Guareschi estava em campo “oposto”. Eu ainda não conhecia Curzio Malaparte; pode ser que mencioná-lo me tivesse rendido a expulsão da sala.
tudo muito saboroso. adoro as suas news.
https://substack.com/@analice/note/c-65534092?r=358do3