Cinzeiro de Latão 33
Escrevendo sobre escrever / Humor / Bitucas / Dia dos Pais / Sebastião (conto)
Cinzeiro 33, 10 de agosto de 2024.
Hoje também saiu mais uma colaboração nossa com o Não é Imprensa. Clique e veja.
Escrevendo sobre escrever
Há muita gente escrevendo sobre como escrever, como já observaram algumas mentes argutas por aqui. A coisa está se espalhando pelo Substack como a febre dos coaches (na certa há algum charlatão que se intitula coach de escrita ou de criação de conteúdo; tanto coach como criação de conteúdo são expressões que me dão calafrios).
Nada contra e nada a favor. A questão não me aflige, embora me chame a atenção: não sou o público do curso (por teimosia pura) e não quero vender nada; tenho pavor de comércio. Apenas acho que não são cursos milagrosos ou dicas espertas que vão ensinar o elemento a escrever, se ele não tiver uma predisposição.
Ensinar a escrever é penoso e, quase sempre, inútil. Aprende-se a escrever lendo e escrevendo. Não existe outro caminho. Fui professor de redação por dez anos e formei vários monstrengos naquele esquema de formulinha, como fazem os cursinhos: uma escrita automática e sem vida. Poucas coisas são mais ingratas que ensinar adolescente a escrever, porque o adolescente não quer escrever: adolescente quer saber do sexo ao qual ele quase nunca tem acesso e de ser descolado com os pares. Masturbação e narcisismo. Ele não tem o menor interesse em escrever o que quer que seja, a não ser que ele, escrevendo, vislumbre comer alguém. E os que sabem não precisam de aula, por certo. Aula de redação é charlatanismo. Não digo que o professor de redação seja um charlatão consciente, mas toma parte numa pantomima, se presta a tal. O adolescente aprende aquelas regrinhas, das três partes do texto, a usar a vírgula com alguma propriedade, a evitar repetições, mas tudo na cabeça dele precisa ser quantificável. “Quantas linhas precisa ter o primeiro parágrafo? Introdução, desenvolvimento e conclusão precisam estar um em cada parágrafo? Existe um limite de repetições?”
Os jovens em período de vestibular não estão preocupados com estilo ou com graça no texto. Querem se livrar dele como quem resolve uma equação. O texto não é um caminho ou uma solução: é um empecilho. Também, os temas boçais que pedem nos vestibulares ou mesmo os com que eles treinam nos seus cursos apostilados são de causar impotência no mais inveterado tarado literato.
Corrigi redação de vestibular por dez anos. Não posso dizer de qual, porque a calangada nos faz assinar uma cláusula de sigilo, sob pena de xilindró, mas, como não disse a prova, não infrinjo aquilo que assinei. É enlouquecedor ler cinquenta, cem redações do mesmo tema, escritas do mesmo jeitinho marotamente estúpido, com as mesmas conclusões bom-mocistas, com os mesmos termos, entremeadas de outrossim, destarte e outras porcarias que a cultura jurídica deste país doente nos passa como laivos de beletrismo. Não desejo tal fado ao meu pior inimigo. Que se afogue em mares menos pestíferos.
A redação escolar é a morte da escrita: cria monstros, todos iguais. Por isso as teses e dissertações ilegíveis que os programas de pós-graduação despejam nas bibliotecas, mas com aspirações cientificistas. Por isso contos escritos como se fossem um boletim de ocorrência feito por um primeiro-anista de Direito. Um país onde se escreve por obrigação e às pancadas não vai produzir nada que preste.
Depois disso tudo, me vêm esses senhores aí no Substack, defecando regras como um professor de redação de ensino médio. Menos escrever sobre escrita e mais escrever. Leitura e escrita, tentativa e erro, ainda parece o método mais acertado.
Humor
O Brasil emburrece a orelhas vistas. E não digo isso porque somos uma vergonha no exame do Pisa ou porque não temos nem um prêmio Nobel, contra os cinco dos nossos vizinhos argentinos. A marca mais patente do nosso emburrecimento é a extinção do humor de qualidade.
Não temos uma revista de humor de expressão. Um país que já teve o Barão de Itararé, Leon Eliachar, Millôr Fernandes, Stanislaw Ponte Preta, o Pasquim, a Casseta Popular e até mesmo a Mad e a Bundas, está hoje entregue à indigência humorística. O humor sumiu do meio escrito; os poucos humorísticos engraçados há muito evaporaram da televisão: foi embora com o fim de Casseta & Planeta Urgente. Um país que já teve TV Pirata vivendo o coma humorístico que são esses programinhas ruins tipo Zorra, não importando o nome que tenham. O humor tipo Zorra, pasteurizado, é ainda pior que o tipo Praça, que é um humor de baixa qualidade, mas cru, direto da teta.
Como diz o querido Orlando Tosetto, o humor nacional se tem resumido a gritaria e palavrão; a gritar palavrão, mais especificamente. Há uma enxurrada de espetáculos stand up, que fazem um humor pontual, de costumes, mas que seguem a regra de gritar palavrão. Prova cabal da nossa neandertalização inexorável.
O humor me parece algo natural, que precisa ser trabalhado, lapidado, mas natural. É a reação ao inusitado. E está presente em tudo; uma ocasião triste pode ter um lado engraçado, e até ser lembrada por ele. Uma vez, fui ao enterro de um tio-avô no Cemitério da Vila Alpina. No meio da Anhaia Melo parada havia também um caminhão com bezerros. Sabe-se lá como, um dos bezerros saltou do caminhão e caiu sobre um Fusca, fazendo do côncavo convexo, e ficou correndo no meio dos carros, arrancando retrovisores. Precisou vir o corpo de bombeiros laçar o bicho. Gente nasce e morre todo santo dia, por mais querida que nos seja. Mas não é todo dia que um bezerro zoneia a rua numa metrópole.
O humor precisa ser recuperado, em todas as suas formas. É algo que nos define como civilização, como humanidade. Com o advento do fogo, o primeiro dedo queimado causou riso ao Homo erectus; rir é saber relevar as vicissitudes da vida. A sisudez é artificial, é burra. As pessoas têm se comportado como velhas insones.
Enquanto não tivermos humor escrito de qualidade, não há salvação para o Bananão. O humor, para mim, é algo necessário. Busco pelo menos um sorrisinho no meu leitor, mesmo que o tema seja sério. Veja: a falta de humor é um assunto que realmente me preocupa, mais que as tartarugas, mas tento rir também, rento fazer o meu leitor sorrir. Já há gente séria demais neste país, e burra, por isso estamos neste pântano. Chega da choradeira que a literatura denuncista nos empurra. Se não voltarmos a rir de nós mesmos, nos tornaremos burros muito sérios, que não veem graça em nada, que ficam caçando preconceito em piada, falando que piada mata. Já deu.
Bitucas
Homem do Celso, buraco do Ozório. O mundo se abichalhou faz tempo; nós é que não percebemos.
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Usar ordinais arábicos no lugar dos algarismos romanos quando se trata de séculos, monarcas e papas. Um ‘folhismo’ que jamais perdoarei.
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A vida é assim: você está pensando num tema de conto e a cafeteira, esquecida sobre o fogo e inconsciente do fado, está sujando o fogão todo.
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Nesta semana morreu Caçulinha, o músico que tocava, ao vivo, os jingles dos patrocinadores do Domingão do Faustão. Eu era jovenzinho e achava meio tristonho um músico ficar tocando jingles de anunciantes, ao vivo, ainda por cima. Uma gravação bastaria. Me lembro muito da Poupança Bamerindus e da Fininvest, que ofereciam as videocassetadas. Aliás, sintomático que instituições financeiras ofereçam videocassetadas.
A ignorância é prodigiosa. Sempre achei que a Fininvest que existia no Brasil era a mesma do finado Berlusconi. E não era. A Fininvest nacional foi incorporada pelo Itaú, pelo que li; o Bamerindus virou água na crise da segunda metade dos anos noventa.
Agora, se foi o Caçulinha, que está tocando teclado na morada do Pai.
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Existirá o céu dos bancos? Digo, um lugar em estejam todas as instituições que não existem mais neste plano. Uma agência do Nacional; outra do Bamerindus. Outra da Nossa Caixa, que foi fagocitada pelo Banco do Brasil. Todas em ruas luminosas e arborizadas.
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Não se pode fumar nos ônibus de viagem. Nem nos urbanos. Mas poderia haver ônibus especiais, só para fumantes. Mais caros, certamente, com menos lugares e com venda de bebida alcoólica. Nisso eu acredito.
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Eu gostaria da vitória de Trump apenas para ver o barrigudinho seboso que mora em Surucucu do Norte desvestir os trapos e pisar em cima deles.
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“Vou levar Glacial, e você vai tomá-la no funil!” Foi a pior ameaça que já fiz a alguém.
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Outro dia, em casa.
— Afinal de contas, qual é o motivo pelo qual vivemos?
— Vivemos pra arrastar o saco no chão, porque haja encheção de saco neste mundo chato.
Dia dos Pais
Amanhã é Dia dos Pais e já deve ter começado a azáfama ridícula nas redes sociais nos dias que precedem a efeméride: gente reclamando da exaltação da figura paterna, porque é a mãe que faz mais pelos filhos e um monte mais de obviedades irrisórias. Aqueles com “consciência social”, cujo pai saiu pra comprar cigarro e não voltou, também se sentem na obrigação de pôr a língua para fora.
As escolas públicas, pelo menos as que conheço, já empasticharam o Dia dos Pais e o das Mães numa comemoração rotulada Dia da Família. Não estou reclamando, porque, nessas datas, nos fazem ir à escola, coisa que não aprecio; não à toa larguei o ensino. O ambiente escolar me dá náusea e me lembra do fracasso da nossa educação, mesmo que a escola seja particular: o fracasso escolar não tem classe social, ele é realmente democrático. A educação apodreceu em todos os lugares. Pôr os pés na escola me cansa muito, me dá suador e tontura. Assistir às crianças massacrando alguma canção, antes de me emocionar, como aos pais normais, me dá algo entre desconforto e vontade de sumir. Tenho pena e ódio do professor de música; sei que ele se esforçou, mas o esforço é em vão, o que me dá ódio. Os pais das outras crianças tampouco me agradam, pois evito qualquer contato com eles o resto do ano; são sempre enfadonhos, profundamente enfadonhos. Mas ali, naquela situação delicada, não tem jeito. Noto, porém, que todos manifestam algo entre a encabulação e o enfado. O olhar enviesado, a vontade de sair correndo a que as pernas não obedecem. As mães parecem gostar desses momentos. O pai vai à comemoração do Dia dos Pais porque a esposa ficou insistindo durante os trinta dias precedentes, porque a escola mandou um comunicado pela agenda da criança, que o pai não viu (ou fingiu não ver: temos muitos sortilégios, e esse fingimento despreocupado é um deles). É incrível como a escola se antecipa nessas questões: nos pegam pelos pés. O combo mãe e escola é incontornável, não há desculpa que caiba. Tendo ainda a chantagem emocional da criança; tenho a sorte de os meus filhos não ligarem um pingo para esse tipo de evento, ao contrário de outras crianças, mas a minha esposa, emotiva, liga. Eu e os meninos cumprimos com a nossa obrigação protocolar de pai e filhos. A coisa acaba, e todos ficamos contentes de poder voltar para casa, para os nossos afazeres de fim de semana, dos quais nos tiraram e aos quais voltamos com vontade.
Tudo bem que a música, mesmo massacrada pelas crianças, acaba arrancando uma lágrima do pai, discreta. Sou chato, mas não insensível. Mas eu poderia derrama a lagrimazinha em casa, no conforto do lar.
O Dia dos Pais remete também a presente. Não sou mais o anticapitalista que fui na infância, ou seja, até os 25 anos, e o mercado que se regule e coisa e tal, mas não me sinto bem recebendo presente, e nem dando. É uma situação incômoda; se bem que presente para o meu pai é fácil: um vinho ou outra bebida. Presente de homem é bebida, no máximo uma camisa; por outros gostos não me responsabilizo.
Quando eu era criança, agora sim, a infância regulamentar, a professora nos fazia montar alguma estrutura mimeografada, que recortávamos, montávamos e cantávamos para encaixar pentes (aqueles de bolso, castanhos) ou canetas esferográficas. Ou ainda porta-chaves de palitos de sorvete colados, que ficavam indistinguíveis de tampas de ralo ou de girafas, horrivelmente pintados de cores berrantes.
Pode ser que alguém veja a magia em tudo isso, e espero realmente que continue vendo, mas eu não vejo a hora de as crianças terminarem de massacrar a canção e eu poder correr de volta para casa.
Sebastião
Sebastião bateu à minha porta. Ainda não eram oito da manhã.
Abri-lhe.
— Entra, a casa é tua.
Sentamo-nos à mesa do café. Só café.
— Você acha que seria, por acaso, uma boa hora para aparecer?
— Não, Tião; não é. Só vai causar mais confusão.
— Mas o povo pede pela minha volta…
— Há quanto tempo você parou de ler os jornais? Isso virou crendice, coisa de maluco. Até tinha uma turma no Nordeste que achava que você estava dentro de uma pedra e matou crianças em cima dela, achando que você fosse sair de lá. Além do mais, você deixou Portugal na mão do seu tio decrépito, e o que aconteceu? Aquele seu primo fominha, o Felipe, tomou tudo. Nem adiantou o seu primo Antônio tentar dar um jeito: ficou numa ilhota dos Açores e teve que fugir. Foi só o João de Bragança, muito tempo depois, que resolveu a situação. E mal e mal ainda…
— Então eu não devo aparecer…?
— É claro que não! Depois disso tudo? Ainda vão pôr você na cadeia. Não procuram você mais para lhe dar o trono, mas para tirar a cabeça que os mouros não tiraram… aliás, você nunca explicou direito essa história de ir se meter na África. O que você tinha na cabeça?! Largou tudo por uma franja de terra seca e infestada de berberes. Só mesmo a Espanha ainda para ficar com Ceuta e Melilha, dois aquários na borda do deserto.
— É que a cristandade…
— Que cristandade, Sebastião? Que cristandade?! Acorda, Tião! O Ocidente está mais morto que a sua reputação.
Sebastião tomou um gole de café.
— Me sinto um lixo…
— Sem autopiedade, Tião; você não tinha consciência do que estava fazendo. Sabe qual era o problema? Você era um moleque miolo-mole. Faria de novo a loucura de encabeçar um exército para conquistar um depósito de areia? Se ainda tivesse a desculpa do petróleo, vá lá, mas, àquela época, nem isso!
— É verdade.
— Muito bem, Tião. Vamos, tenho que ir para o trabalho. Depois a gente conversa mais. Aliás, como está o curso de computação?
— Está bem. Começamos o Excel ontem…
— Perfeito. A gente vai se falando.
Abracei Sebastião, e ele foi embora. A aula de informática começaria dali meia hora.
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Acabo de ler um.,no NEIM, e venho ler outro.