Cinzeiro de Latão 35
A exposição de carros antigos / Bitucas / Dança com bobos / O homem do rádio (conto, última parte)
Cinzeiro 35, 24 de agosto de 2024.
A exposição de carros antigos
Em cidade interiorana, onde pouco há para fazer, qualquer poça vira lago. Além do clube dos bacanas decadentes, do ponto gastronômico famoso, mas duvidoso, e do bulevar que a sanha do mercado imobiliário perdoou, qualquer evento sazonal se torna atrativo.
A exposição de carros antigos é evento tradicional de Culumúndia. Duas ou três vezes por ano, colecionadores de vários lugares, principalmente da região, vêm expor as suas relíquias motorizadas num espaço deixado vazio pela decadência da ferrovia. A cidade conta com um clube de colecionadores, que organiza tudo.
É sempre interessante ver como o gosto estético, nos carros e no geral, foi evoluindo: o automóvel ainda muito máquina dos anos trinta, que parece um moedor de cana, as linhas arredondadas dos anos cinquenta e sessenta, as mais retas dos anos oitenta, para chegar à atualidade: um empastelamento de linhas pretensamente aerodinâmicas que deixou todos os carros indistinguíveis uns dos outros. Os detalhes mudam: as formas dos faróis, dos vidros, das maçanetas. Nota-se o avanço inexorável do plástico já a partir de meados dos setenta; antes, é tudo metal e, nos modelos mais antigos, até madeira.
Há carros expostos como raridades, mas que fizeram parte da minha infância, como o Fusca. A finada Telesp usava Fuscas laranja como carro de serviço, o que equivalia ao Uno com escada de hoje; a Polícia Militar de São Paulo teve Fuscas também, até o começo dos noventa. O meu pai teve dois. Hoje, eles são entesourados pelos colecionadores, lindos e reluzentes, ou estão com cinquenta anos de raladas, nas mãos de pedreiros e serralheiros quase nonagenários. Um desfile de carros que eu via passar numa Radial Leste ainda meio esquálida, com as estações do metrô recém-inauguradas, ainda com o pó vermelho das obras impregnando o concreto recém-curado: Corcel II, Brasília, Variant, Opala. Já viraram história. A juventude presente os observa como eu quando vi uma Romi-Isetta subindo uma avenida perto do metrô Jabaquara, por volta de 2000 ou 2001.
Sim, há jovens no recinto, mas o público é majoritariamente formado por homens que tiraram suas carteiras de motorista para dirigir um Fusca 68. Todos saudosistas. Param diante dos Fuscas reluzentes e observam, com os olhos arregalados: se veem remoçados no reflexo do capô.
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Saio da exposição para comer no espaço gourmet anexo. Sento-me e, na minha frente, surge uma mulher. É já de meia-idade, a um passo da terceira, mas usa um modelito que lembra os da Magda Antibes de Sai de Baixo, com a diferença de que, à época, Marisa Orth era muito bonita. A roupa passaria batido, ainda mais hoje em dia, em que cada um veste o que bem entender. O problema era a tatuagem na panturrilha. E aqui se abre outro capítulo, quase um tratado: há tatuagens e tatuagens. Há desenhos que são atemporais e belos, que ficam bem numa mocinha de dezoito, numa senhora de sessenta ou num mastodonte de academia. Há várias fotos de velhinhas japonesas com tatuagens. O problema é quando a tatuagem é porca. E não é porquice de execução, mas de ideia.
A senhora em questão tinha tatuado, em uma das panturrilhas, uma coelhinha antropomorfa sensual, que aparece num desenho animado, mostrada da cintura para cima. Não era, porém, a coelha do desenho, mas uma versão sexualizada, com peitões de atriz pornô, redondos que nem bolas, semicobertos por um biquíni que ocultava tão somente os mamilos. A tatuagem, pelo traço nítido, era trabalho muito recente e estava benfeita. O que leva uma senhora a tatuar uma coelha pornô na panturrilha? Eu não consigo imaginar um motivo. Sem nenhum tipo de moralismo barato; não é da mina natureza. Como eu disse mais acima, há tatuagens que ficam bem em qualquer pessoa, mas por que uma coelha pornô de dois palmos na panturrilha?
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Ainda na praça de alimentação, um cantor de pizzaria, contratado pela organização, começa a cantar uns covers desafinados sobre um palco montado especialmente para a ocasião. Uns instantes antes, ele se queixava com o auxiliar sobre a falta de retorno. Na caminhonete plotada do cantor, havia a informação que eram trinta anos de sucesso. Não sei o que sucesso significaria exatamente para o artista; naquele momento, para mim, era tímpano rasgado.
Enquanto o som fazia tremer os copos e as mesas de plástico, fui embora, afugentado.
Bitucas
Caiu nos meus olhos, como cisco trazido pelo vento, um recorte de jornal em que Renan Calheiros, então ministro da Justiça, bradava contra um jogo de computador, o armageddon II, cujo tema era selvageria automotiva. Despiciendo.
Nisso tudo, duas coisas são inacreditáveis. A primeira é relembrar que Calheiros tenha sido ministro da Justiça, um oxímoro gritante. A segunda é que o imbroglio envolvendo o jogo e o poder constituído mostra bem o estofo dos que nos governam: perdem tempo com o moralismo de comadres enquanto o pau tora em silêncio em outras áreas. São umas vestais de carnaval, uma elite coió.
Dança com bobos
A apresentação convulsiva da doutora Rachel Gunn nas Olimpíadas de Paris é um marco inaudito da vergonha alheia e que mostra bem a relação que alguns acadêmicos têm com o seu objeto de estudo. A doutora Gunn é especialista em dança de rua; pode ser que ela entenda bem da sociologia envolvida e seja mesmo praticante amadora, mas entender de cerâmica grega não significa conseguir fabricá-la. Não é uma relação difícil de entender. Parece que houve uns favorecimentos para que a doutora Gunn deixasse a Austrália por Paris para meter os pés pelas mãos. Ou vice-versa. Mas o escopo hoje não é o lero-lero acadêmico, e sim as imposturas que ofendem Terpsícore.
Descobri que dança contemporânea era enrolação quando assisti a uma apresentação no Teatro Municipal de São Paulo, em companhia de uma amiga, há uns bons anos. O evento era gratuito, mas saiu caro pela vergonha alheia que me deu.
O balé (?) tinha por tema a vida dos presidiários, o que já começa a deixar a coisa estranha. Dançarinos vestidos com farrapos sujos se contorciam numa sucessão incompreensível de movimentos bruscos sobre o palco e batiam pratos de alumínio no chão, fazendo um barulho horrível. De repente, um dos bailarinos/presos, o que havia entrado por último, começa a ser importunado pelos outros. A situação retratada era clara.
Enquanto a bateção de pratos corria solta, o assédio ao recém-chegado ficava mais insistente. Nisso, as luzes se foram enfraquecendo devagar. Os bailarinos começam a diminuir o ritmo e a intensidade dos golpes com pratos. Escuridão total no teatro. Um urro de dor ecoa, vindo do palco.
A minha reação imediata, naquele silêncio constrangedor entre o grito do preso sodomizado e a ovação de praxe que o seguiu, foi uma gargalhada ruidosa. Provavelmente a mais alta que dei até hoje.
Nunca mais aceitei convites para apresentações de dança moderna.
O homem do rádio
* * *
Última parte
Cláudio estava andando no meio do cemitério. O sol a prumo fazia com que ele ofegasse e suasse por todos os poros. Tinha que levar o rádio ao seu dono, aquele rádio capela. Não sabia por que o dono tinha escolhido um lugar tão estranho para fazer a entrega.
Andou mais um pouco. As árvores do cemitério lhe davam o refresco adequado; o vento levantava nuvens de poeira vermelha que revolteava à luz do sol e lhe entrava nos olhos.
Foi se aproximando da área onde havia um muro de gavetas, que tinha um aspecto de muito velho, mas Cláudio não se lembrava dele. E olha que já tinha enterrado ali meia família paterna. Andando por um corredor, viu à distância o homem do rádio, de terno branco. Foi até ele, que só percebeu a presença de Cláudio quando estavam quase se esbarrando.
— Aqui está o seu rádio. Está funcionando... era apenas sujeira.
O homem se virou. Parecia diferente: não era mais aquele senhor de idade que tinha entrado na sua oficina. Ou melhor, era; o rosto, os cabelos. Mas parecia duas vezes maior. Cláudio não tinha reparado que o homem era tão alto. Talvez fosse a má impressão do lugar ou o desnível do terreno; ou o branco que deixa as coisas maiores. Também a expressão do rosto, que na oficina difundia uma bondade inerente, agora estava mais dura, menos amistosa. Pode ser por conta da sombra da árvore sob a qual eles estão.
— Obrigado, meu filho. Por tudo. — e sorriu, dando-lhe o dinheiro. Cláudio tirou do bolso um recibo e uma caneta; preencheu o documento e o deu ao homem.
— Tem noventa dias de garantia...
— Não será necessário...
Virou as costas e foi embora. Cláudio pegou o lado oposto e começou a descer a ladeira poeirenta. Uma pressa instintiva o empurrava. A luz do ocaso lhe vinha dentro dos olhos e, na cegueira cheia de luz, via apenas manchas luminosas vermelhas, da poeira que o vento levantava e das sombras alongadas das cruzes, como martelos muito longos que vinham lhe dar aos pés.
Por trás de umas árvores, viu um prédio estranho, parecido com um dos blocos destinados aos velórios, mas que estava praticamente no meio da quadra de sepulturas. Foi ao prédio e notou com estranheza que era uma lanchonete com mesinhas de plástico à porta. Estava escurecendo, e a luz das lâmpadas fluorescentes batia sobre algumas cruzes que estavam mesmo bem próximas; etéreas, pareciam fantasmas de cruzes.
Apareceu uma atendente.
— Boa noite. Quer alguma coisa?
— Não, estou apenas de passagem.
— Pois saiba o senhor que vai precisar de bastante comida...
Àquela frase sentiu-se quente, como se aquecido pelo sol novamente. A poeira lhe invadiu os olhos numa rajada de vento. Coçou-se e abriu os olhos: viu o teto do quarto. Eram oito e meia da manhã. O cobertor e os lençóis que se enrolaram às suas pernas o esquentavam demais. Tinha perdido a hora.
Quanto à hora não se preocupou muito; Marcelo, apesar da pouca idade, era responsável e tinha as chaves da oficina. Tomou um café preto e saiu.
Assim que estacionou diante da oficina, sentiu um cheiro horrível vindo de dentro do carro. Virou-se para trás e onde estavam os abacates que tinha colhido na véspera havia somente frutas podres. Mas o odor que exalavam era superior a fruta podre; parecia carniça.
— Como apodreceram tão rápido?! Que nojo! Marcelo, me ajuda aqui!
Cláudio e Marcelo esvaziaram e lavaram o engradado.
— Nossa, seu Cláudio, nunca vi abacate tão fedido.
— Nem eu, Marcelo.
Terminada a limpeza, entraram na loja. No lugar onde estava o rádio capela, nem marca dele.
— E o rádio, Marcelo? Onde está?
— O mesmo senhor que tratou com você ontem veio buscar logo de manhã... eu cheguei e ele já estava na porta.
— E ele levou o rádio? Pagou?
— Olha, seu Cláudio... ele tinha um recibo com a sua assinatura... e a garantia que a gente dá pros aparelhos reparados. Acho que o senhor deu o recibo para ele antes… parece.
Confuso, Cláudio se sentou um instante. Não era esse o combinado. Lembrou que tinha anotado o telefone do cliente no caderno de controle. Pegou o aparelho e discou o número da casa:
— Esse número de telefone não existe. Favor consultar o catálogo telefônico ou o serviço de informações... — não esperou o fim da mensagem automática da companhia telefônica e discou novamente. — Esse número... — bateu o monofone. Ligou de novo: — Esse núme... — bateu novamente o telefone com força. Marcelo, sem respirar, olhava o chefe.
Cláudio ficou alguns instantes pensando, apoiado no balcão, tenso, como quem tenta se lembrar de alguma coisa escondida nos recônditos do cérebro. Por fim, avermelhado, disse a Marcelo que ficasse no balcão que ele ia dar uma volta.
Precisava andar. Algo tinha acontecido: um lapso de memória. Se bem que ainda fosse novo, mas havia vários casos de mal de Parkinson na família do pai, de Alzheimer na família da mãe; fora aquele tio-avô que se enforcou no sanatório e aquele outro, esquizofrênico, que vivia no meio do mato, no sopé da serra do Mar, e que ninguém visitava, o conhecia apenas pela fama de feroz e por conta do folclore familiar.
A possibilidade de ser afligido por um desses males aterrorizava Cláudio. Caminhava ligeiro pela calçada da avenida, com uma leveza densa que embaçava a sua percepção. Parou diante da padaria e àquela vista pareceu ter recuperado algo de sobriedade. Entrou e pediu um café puro, sem açúcar. Os homens bebiam e conversavam sobre a última rodada do campeonato de futebol, o tilintar de copos e talheres, o rumor áspero do jato de água quente da cafeteira, o rumou incidental da rotina o tinha trazido para a normalidade. Sentiu-se seguro entre os barulhinhos do cotidiano.
Deve ter sido um lapso e não ia ocorrer novamente; era questão de fazer uns exames e não se apavorar. Pensava e olhava para o café no fundo do copo americano. De repente, sentiu um toque no ombro e se voltou espavorido, assustando o barbeiro, que o tinha visto e veio cumprimentá-lo.
— Opa, calma que sou eu!
— Puxa, me desculpa... eu estava distraído...
— Você parece preocupado...
— Nada demais... besteira.
— Então está bem. Mais tarde eu dou um pulo lá na oficina.
— Certo.
E o barbeiro se afastou.
Cláudio pensou que talvez fosse melhor ir para casa, descansar um pouco e depois marcar uma consulta com um neurologista.
Voltou, pegou o carro e foi para casa. A esposa já tinha ido trabalhar.
— Era o que eu deveria estar fazendo também.
Tirou a roupa e vestiu novamente o pijama que tinha ficado largado sobre a cama. Havia algo incomodando por dentro das calças de flanela. Cláudio chacoalhou a perna das calças e pela barra caiu algo. Eram quatro notas de dez reais.
— Mas como isso veio parar... — e sentiu um calafrio. Lembrou-se do sonho. Então tinha sido verdade? Mas como? No cemitério, pelo que conseguia se lembrar, ele não estava de pijama. Mas tinha posto o dinheiro no bolso da frente do jeans, disso se lembrava com nitidez. Sentou-se à beira da cama, confuso. Sentia vontade de sair correndo e berrando pela rua e, ao mesmo tempo, um cansaço que lhe vinha dos ossos.
Cláudio acabou adormecendo; não soube se adormeceu de exaustão ou se desmaiou. Quando acordou, o sol se punha. Escutou barulho de chaves: era a esposa que chegava. Levantou-se rapidamente e foi ao seu encontro.
A esposa, que tinha entrado e posto umas sacolas de compra sobre a mesa, estranhou o marido de pijama àquela hora.
— Cláudio, você está bem? Parece que correu atrás de um caminhão o dia todo!
— Não sei, querida. — e contou à esposa, em linhas gerais, o que tinha acontecido, ou melhor, o que ele achava que tinha acontecido.
A esposa ouviu tudo, em silêncio, falando apenas quando Cláudio terminou.
— Cláudio, você não pode ter entregado o rádio ontem à tarde, pois falou dele na hora da janta... eu me lembro. Tem certeza que você não entregou hoje de manhã? Parece que tinha uma caixa no banco de trás do carro, que eu vi de manhã.
No meio daquela confusão, Cláudio se lembrou dos abacates.
— Caixa? No banco do carro? Estava vazia — sentiu vergonha pelos abacates do cemitério — Talvez eu esteja mesmo muito cansado… é possível que algo tenha me deixado nervoso… não sei. Espero que passe.
A esposa abraçou Cláudio.
— Fique tranquilo, vai passar… mas é bom marcar um médico… não quero te assustar, mas é bom.
— Não, tudo bem… eu pensei nisso também. Vou marcar, sim.
Depois de ter dormido tanto tempo seguido, Cláudio estava sem sono. A esposa foi dormir, e ele ficou na sala com uma sensação de incômodo. O silêncio da madrugada e a leitura começavam a irritá-lo; quando ia levantar-se para ligar a televisão, em um reflexo instintivo, virou-se para a poltrona no outro canto da sala e, sentado nela, o homem do rádio, com o terno branco, exatamente como no sonho. Cláudio esboçou um berro de pavor, que travou na garganta. Caiu de volta sentado no sofá.
O homem do rádio tinha recuperado a expressão serena: lembrava um avô bonachão. Cláudio o olhou bem, em silêncio.
— Calma, filho, não precisa gritar… não é o caso…
— O que você está fazendo na minha casa?! Já não lhe entreguei a porcaria do rádio?
— Rádio? E quem se importa com um rádio velho…? Os meus interesses não têm a ver com rádio algum… aliás, você tem certeza de que aquele rádio existiu?
Cláudio não sabia de mais nada; não conseguia uma faísca de razão que lhe iluminasse a confusão escura que percebia.
— Que seja! Mas você! O que você quer?
O homem sorriu e tirou do bolso do paletó um charuto. Acendeu-o e soltou uma baforada de fumo:
— Já tenho o que quero… quer uma tragada? É cubano…
— Então por que não se manda e me deixa em paz?
— Porque não posso levar embora o que tenho agora.
Um silêncio pesado se espalhou pelo ambiente. Cláudio olhava para o homem enquanto esse, que se tinha levantado, passeava devagar pela sala, observando as revistas e os livros. Parou diante de um quadro, uma paisagem bucólica:
— Sabe, esse charuto pedi que o pusessem no meu bolso…
Cláudio apenas olhava, pálido.
— Tudo bem. Mas então, o que exatamente é seu e você não pode levar…?
O homem se voltou devagar e se sentou novamente na poltrona:
— Bela casa a sua. Vou gostar de viver aqui…
Cláudio se ergueu:
— Mas que porra! Como assim?!
— Veja bem — continuou o homem —, a questão é simples: agora, você me pertence.
— Como assim, eu pertenço a você? Não me vai dizer que você… é o Demônio?! Mas eu não vendi minha alma para você! Mas…
— Não é nada disso. Não sou o Demônio nem tenho ou quero a sua alma. A sua alma continua sendo sua…
Cláudio abria a boca, mas nada saía. Não conseguia encontrar algo para livrá-lo da situação ou para pôr termo ao sonho.
— Mas se não é a minha alma que você tem… o que é então?
— O seu corpo, Cláudio, o seu corpo! — disse o homem, entediado.
— Eu não entendo… eu não entendo mais merda nenhuma! Não entendo… — desesperou-se Cláudio.
— Preste atenção, Cláudio. Não há maldade ou bondade nessa história toda. Nem ponha aí o Demônio que compra almas, pois não é o caso. Nem nós do mundo intermediário sabemos da existência do bem ou do mal etéreos… entende? Quando morremos, nossa alma não boia por aí, como pensa essa gente que tem fumo de corda no lugar do cérebro… não, senhor. Imediatamente após a morte, a alma se transfere para coisas vivas, tomando o lugar daquela outra alma, sem a desalojar…
“Então, sempre quando alguém morre, vai ficar em algum ser vivo mais próximo… quase sempre a primeira transferência é para algum micro-organismo. Bactérias, amebas, flora intestinal, essas coisas que temos pelo corpo. Assim que morri — e você está me vendo na forma que tive —, tive de me contentar em ser ameba; depois, uma bactéria que me levou para a raiz de uma planta. Depois, essa planta também morreu e consegui me instalar num abacateiro… aquele abacateiro à porta do cemitério. Concentrei toda a minha existência em um abacate, o mais graúdo e brilhante.
“Mas é difícil que alguém coma frutas de cemitério, não é? As pessoas têm um receio fetichista — aliás, receio com fundamento. Precisava chamar a atenção de alguém. Do abacateiro, vi você chegando de carro… — O homem filosofava e desfrutava da própria esperteza.
— Um momento! Mas como você conseguiu sair do abacateiro e me atrair?
— Fácil, Cláudio. Já ouviu falar de mesmerismo? O chamado magnetismo animal? Pois também funciona com vegetais. Quando você saiu do carro, e gordo e guloso como é…
— Certo, sem detalhes…
— Tudo bem… fiz você ficar interessado no abacate. Você e os meninos da loja não viram nada mais do que uma alucinação coletiva. Nunca houve rádio; tive de me valer de uma lembrança sua para aquele rádio: o rádio que tinha no sítio do seu avô. Garanto que você ficou intrigado com a semelhança…
— Fiquei com a impressão que conhecia o aparelho de algum lugar…
— E de fato conhecia. Conhecia tão bem que pude dar a forma exata ao objeto da alucinação. Instiguei seu estômago para os abacates e fiz com que o carro morresse exatamente sob a árvore.
Cláudio voltou-se choroso para o homem:
— Quer dizer que fui controlado por um abacate?
Até o homem do terno branco se mostrou um pouco encabulado:
— É, Cláudio; é mais ou menos isso… quando você pôs os abacates na caixa, pegou aquele no qual eu estava concentrado. Ali foi um golpe de sorte. Você poderia ter pego qualquer outro, mas eu escolhi o mais provável, ou seja, o mais suculento. Você agiu exatamente como eu previa; e na hora de escolher o primeiro, também escolheu o meu. E ainda bem, pois as frutas depois que são tiradas dos pés, por conta da energia das almas, estragam rapidamente… foi o que você viu no dia seguinte: as frutas totalmente estragadas.
— E agora — choramingou Cláudio —, o que vai acontecer?
— É um processo de substituição. Vamos compartilhar o mesmo corpo até a morte física… com predominância de um, ou seja, eu. Você, ou melhor, a sua alma, continuará existindo, mas ficará relegado à percepção psíquica.
— Talvez eu esteja sendo ingênuo em lhe perguntar, mas… não tem retorno esse processo?
— Não, Cláudio. É uma das mil formas de reencarnação existentes. É um jogo: há quem ganha e há quem perde. Você apenas será livre novamente quando o corpo físico morrer…
E nisso, como a imagem borrada do televisor, o homem sumiu.
Cláudio tinha dormido no sofá e acordou babado; era mais de meio-dia. A esposa o tinha deixado dormindo, imaginando que ele tivesse demorado para pegar no sono. Cláudio sentiu que tinha tido outro sonho medonho… ia telefonar para a esposa, que já estava no trabalho, quando uma visão lhe paralisou as ações: um charuto fumado pela metade no cinzeiro da mesa de centro.
O coração lhe batia forte e Cláudio, ofegante, precisou se sentar.
— Meu Deus, então é verdade, é verdade! — e chorava.
De dentro da cabeça, disse-lhe uma voz. Aquela voz:
— Cláudio, não chore. Você tem pouco tempo até que eu tome conta de tudo…
E a mão de Cláudio começou, como alheia à sua vontade, a mover-se em direção do cinzeiro. Cláudio explodiu num grito inumano:
— Não!
Do jeito que estava, de pijamas, pegou as chaves do carro.
— Ah, meu velho! Não vai ser assim tão fácil quanto você pensa!
Pegou um papel e deixou um bilhete para a esposa. Longo bilhete. A mão não queria obedecer. A voz do homem se erguia dentro da cabeça, e Cláudio gritava para que se calasse. O vizinho viu Cláudio brigando com o nada as berros e correu a fechar as janelas.
Cláudio entrou no carro e, fazendo um esforço imenso, mal conseguia manter a direção e trocar as marchas. O seu inquilino de corpo estava tentando evitar as ações.
— Cláudio...!
— Cala a boca, filho da puta! Cala a boca!
Cláudio guiou por um bom tempo até a ponte que havia sobre um braço de mar. Estava cansado, suava; o pijama estava empapado como se ele tivesse entrado vestido no banho. O esforço foi supremo, e ele estava esgotado. Saiu do carro, e as pernas falharam: o homem do rádio começava a sabotá-lo.
— Não, Cláudio — pedia-lhe a voz — Por favor, não faz isso!
— Cala a boca, filho duma puta! Vamos os dois, mas com você eu não fico!
Do outro lado da ponte, um policial rodoviário via a cena e, atraído pelo tom da voz raivosa começou a andar em direção ao carro para a averiguação. Percebendo que não conseguiria levar sua ideia a cabo caso o policial chegasse, Cláudio ergueu-se pesadamente e apoiou-se no gradil da ponte. O guarda, percebendo do que se tratava, começou a correr na direção de Cláudio, lhe dizendo para que não pulasse. Ao girar as pernas sobre o gradil com muito esforço, Cláudio girou no vazio; ouviu dois gritos simultâneos e que diziam um mesmo não: o do policial e o do homem do rádio.
Foi um baque surdo na água. O policial mal teve tempo de chegar ao gradil. Viu apenas a ferida que o corpo fez na superfície. Ali embaixo, a derradeira discussão. O homem do rádio chamava Cláudio de imbecil e Cláudio lhe respondeu, com o último fôlego dos pulmões, que não queria saber de hospedeiros, que nunca havia tido vermes e não era agora que os ia ter no corpo. Enquanto rodava e se debatia, maldizia o abacate do cemitério. O homem do rádio não falava mais.
De repente, Cláudio se sentiu livre do peso da água. Viu o corpo afundando já sem debater-se e percebeu-se com movimentos estranhos. Virou a cabeça o máximo que pôde e viu uma cauda luzidia. Agora ele era um peixe; não importava qual: apenas era um peixe agora. A alma desses animais, de natureza ingênua e diferente das humanas, não teve sequer tempo de esboçar reação.
O mais rápido que pôde, Cláudio se afastou daquele lugar, nadando na direção da corrente, em busca do mar aberto.
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Muito bom o conto!
Essa parte dois do conto, uow!