Cinzeiro 37, 7 de setembro de 2024.
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Hemorroidas
Numa das minhas colaborações no Não é Imprensa, um assinante de lá deixou o comentário de que eu, o autor do texto, tinha hemorroidas. A afirmação é curiosa. A intenção da pessoa, que, suponho, esteja livre de hemorroidas, era dizer que o meu texto tinha como origem um episódio de dor aguda na região anal, na linha americana do butthurt. Um dos artigos compilados ali pelo Martim Vasques Cunha, também publicado aqui, falava mal sobre a nova geração de políticos.
Mal sabe o reclamão, provavelmente fã de algum dos criticados, que, além de eu torcer para que os políticos se matem entre eles, aprecio muito o nonsense. Há dez anos um comentário desse tipo teria tirado o meu sono; como de fato um aldrabão conseguiu, certa feita. O aspirante a escritor é um bicho muito, mas muito sensível, principalmente quando jovem. O ad hominem (no meu caso específico seria um ad culum) é algo que mexe diretamente com a existência do autor, que se sente ameaçado, que sente o vento arrebentar o seu castelinho de cartas. Porém, os anos me deixaram cascudo e, em vez de ficar nervoso ou assustado, a situação me divertiu muito. Teve um humorismo acidental ali. O proctologista involuntário me serviu como escada em pelo menos duas tiradas: virou o meu Dedé Santana. E se trata de um proctologista adivinho, pois, obviamente, não teve exame físico. Um proctologista que fizesse os exames com o poder da mente seria um portento, pois nos livraria da dedada dos quarenta. Como bem lembrou um leitor do Cinzeiro, pode ser que o reclamão fosse o doutor Jacinto Leite Aquino Rego, o personal psicoproctologista do grande Agamenon Mendes Pedreira.
Esse tipo, comum na caixa de comentários das notícias e das crônicas, viveria muito também na caixa de areia do gato: ele nada acrescenta, apenas excrescenta. Está ali para feder, como aquilo que o gato enterra.
Se eu tenho hemorroidas ou não, lhes deixo o benefício da dúvida.
Independência
Nesta data, há 202 anos, o Brasil se tornava integrante do concerto das nações, deixando de ser parte da monarquia dual lusa ou colônia de Portugal. Pessoalmente, acho que deveríamos ter entrado no conserto das nações; teria sido muito mais apropriado uma revisão completa antes do lançamento. O responsável por nos jogar no mercado sem o controle de qualidade adequado, como é notório, ou deveria ser, foi o príncipe Pedro de Bragança, herdeiro do trono português, mas que se tornou o nosso primeiro imperador. Entramos tocando tuba num concerto para violino.
O processo de independência do Brasil mostra como somos diferentes dos nossos “irmãos” latino-americanos. Aliás, a América Latina foi uma criação de Napoleão III, imperador francês e sobrinho do anão corso, primeiro do nome, para justificar a intervenção francesa no México; depois, as esquerdas latino-americanas, fervidas no marxismo afrancesado, usou o conceito para propor uma unidade de luta continental. A América Latina, como conceito, é igual a artesanato hippie com epóxi. Esse irmanamento talvez pareça natural aos hispanófonos do Novo Mundo (não sei se os argentinos se identificam assim em relação, por exemplo, aos hondurenhos), mas é forçado para nós, luso-americanos; embora eu duvide que a maioria de nós se identifique como luso-americano. Não importa: o fato de falarmos português, e não espanhol, já nos faz diferentes, bem diferentes. O nosso processo de independência se deu por herança, de pai para filho. Dom João VI, vendo que a estada da Corte no Rio deu asas a uma vida civil, que a turma tinha pegado gosto em ser o centro, preferiu que o filho, criado entre nós, tomasse as rédeas antes que algum grupelho jacobino o fizesse. Houve até umas batalhas chamadas de Guerra da Independência, mais reflexo dos interesses da classe política portuguesa do que vontade da Corte. João, já cansado de sarilhos militares, preferia comer franguinho assado na manteiga e chupar laranja a se enfiar em guerra. A independência brasileira foi um arranjo familiar.
Esse processo de independência burocrático permitiu a manutenção da unidade nacional, ao contrário do que aconteceu com a América Espanhola. Mesmo que a transição tenha sido na manteiga, não tiro os méritos de Pedro I, que tentou ser um monarca constitucional, mas deu de cara com os maus bofes que caracterizam o brasileiro desde o início. De saco cheio, Pedro chutou a Constituinte e outorgou a Constituição em 25 de março de 1824. Aliás, a rua 25 de Março de São Paulo, famosa pelo comércio popular, tem nesse fato a origem do seu nome.
Foi um bom começo. Não tivemos a sanha gritalhona de Belgrano, de San Martín ou de Bolívar: o Brasil surgiu com as nádegas acomodadas na almofada verde dos Bragança, que continuaram reinando por aqui até 1889. Sim, houve umas revoltas, causadas justamente pelos jacobinos que teriam balcanizado o Brasil, mas que acabaram neutralizadas. Foi bom? Foi ruim? Não sei dizer.
A transição amanteigada em 7 de setembro de 1822 é lembrada oficialmente com paradas militares. A principal em Brasília, sob o comando do Ilustríssimo Senhor Presidente da República de turno, e, imagino nas capitais dos Estados. Em São Paulo e no Rio sei que há. Alguns canais transmitem, ou transmitiam, os desfiles. Uma vez, zapeando na tevê ainda de tubo, caí na transmissão de um desfile fora do eixo Rio-São Paulo-Brasília. A câmera mostrava a banda da polícia militar de algum Estado cuja farda era cáqui; era uma parada cansada, com cavalos cansados, um pingo de gente nas calçadas. Parece que garoava, mas pode ser uma armadilha da minha memória. De fundo, a abertura de “Guilherme Tell” (aquela que sempre aparece em desenhos animados), do Rossini, tocada de maneira desleixada pela banda, toda desconjuntada. A câmera muda da avenida suja por onde passa o desfile e foca o soldado com o trombone: a farda puída, com um botão descosturado e mal aguentando as adiposidades do militar, que suava terrivelmente ou estava molhado pela possível garoa. Os seus dedos, com unhas surpreendentemente sujas, oscilavam nos pistões do trombone, todo amassado e opaco da gordura de gerações de dedos. Foram dez segundos de transmissão que me traumatizaram para a vida.
Há os que desmerecem o príncipe Pedro dizendo que ele havia comido uma mariscada em Santos e teve que parar no Ipiranga porque as entranhas, revoltadas, assim o obrigaram. Se ele deu o grito com caganeira e de camisolão, e não em plenas condições e de farda, acho tudo ainda mais louvável. Eu, assim combalido, me daria por contente se conseguisse descer do cavalo e alcançar a latrina; postergaria qualquer assunto para o oito de setembro, ou até para o dia dez. Vencer a diarreia e fundar um país é para poucos.
Nesta dia, fico pensando nos símbolos pátrios, ausentes das escolas em que estudei, porque os militares nos fizeram cansar deles de tanto os esfregar na nossa fuça, achando que isso fosse nos dar caráter ou algum patriotismo. A bandeira às vezes estava hasteada em algum lugar, mas sempre esgarçada e puída, como se fosse a de um país recém-derrotado. Volta e meia me pergunto o que é ser brasileiro; como resposta a minha mente me mostra uma dessas bandeiras rasgadas que eu via na infância. Um trapo drapejando. O Brasil nasceu puído e esgarçado.
Mas estamos aí há dois séculos, sendo brava gente, sem temor servil. Aliás, sem o menor temor servil. Porque se tem uma coisa de que o brasileiro gosta é ter umas botas pra lamber.
Fulânia
O reino da Fulânia cunhava moedas tão grosseiras e cheias de bordas que os profissionais mais prósperos do país eram os cerzidores de bolsos e os fabricantes de curativos. Bastava encostar nas moedas para que um corte aparecesse nos dedos. Houve casos graves de amputações de dedos e até mesmo de morte, depois que um cidadão caiu na rua e as moedas que estavam no bolso do paletó lhe terem entrado pelas costelas.
O que mais se vendia no reino eram linhas e agulhas, para execução dos cerzidos, e toda sorte de curativos e desinfetantes. As moedas tinham de ser limpas após cada operação de compra ou venda, porque era comum trazerem algum pedaço de pele ou mancha de sangue. Não se mudava as peças porque eram feitas de maneira tradicional e com uma liga que só era obtida no reino. O príncipe herdeiro decidiu que a situação ia mudar: assim que assumisse o trono – o que não demoraria, pois o rei estava com uma infecção generalizada causada por cortes nas mãos –, mudaria o sistema monetário arcaico de base vigesimal e o método de fabricação das moedas, cujos empregados precisavam trabalhar seminus e de turbante, por conta de tradição, mesmo que estivesse frio.
Chegou o dia. O príncipe se tornou rei e chamou especialistas de várias casas da moeda do mundo todo. Viu que uma moeda segura não seria difícil de fazer e ordenou a nova cunhagem. O anúncio foi feito com pompa na praça maior da capital. O novo rei, que esperava uma apoteose, viu o povo sair resmungando.
Uma semana depois, os atendimentos nos hospitais tinham caído em dois terços. As novas moedas, porém, não estavam afluindo para o Erário Público. As novas moedas tiraram o emprego dos cerzidores de bolsos e dos fabricantes de curativos. A economia estagnou; as falências foram se acumulando. Uma crise imensa se instalou no país que não produzia nada além de linhas, agulhas e curativos. A turba entrou no palácio com machados e decapitou o rei.
Veio uma república que prometeu à patuleia suja e faminta novos tempos e mudanças, incluindo a readoção do velho sistema monetário e das moedas cunhadas à moda tradicional. Assim, a neonata República da Fulânia voltou a prosperar com cerzidos e curativos.
Caim
O cachorrinho malhado abanava o rabo e se exibia com gracejos na calçada cheia de gente; o máximo que ganhava era a indiferença das pessoas. As crianças paravam para o ver, mas logo eram puxadas pelos adultos, e o cachorrinho terminava enxotado. Desanimado, o cão sentou-se num canto e ficou descansando.
Tempo depois, passou pela calçada um homem simpático. Apesar de o cãozinho ter detectado a simpatia – o homem vinha assoviando –, resolveu ficar na retaguarda; já tinha ganhado uns safanões e estava cansado deles. Mas que surpresa quando o homem veio sorridente na sua direção. Foi correndo fazer festa.
O homem o pegou no colo – era ainda um filhote –, e os dois se afastaram daquela calçada. Calçada nunca mais.
Apesar do aconchego do novo lar, o cãozinho uivou e chorou noite adentro. De que lhe serviam a caixa de papelão forrada com um lençol velho e as cuias com comida e água? Estava num lugar estranho, e o homem, depois de o acomodar ali, foi embora. O bichinho acabou dormindo de cansaço.
Na manhã seguinte, o homem reapareceu. Trocou a comida e a água; esperou que o cão comesse e dizia em voz alta: “Você precisa de um nome…”. Parece fácil dar nome para cachorro; às vezes o nome vem rápido, outras não. O homem morava sozinho; se houvesse uma criança em casa, a questão teria solução rápida.
O homem observava o cachorro, que comia. “Você chorou a noite toda, hem, pequeno? Caim, caim, caim… a noite toda… acho que vou pôr você para dormir comigo….”. O cão, quando ouviu a imitação do seu choro, latiu para o homem, que quis ver nisso um gracejo do cão. Um repetia “caim, caim” e o outro latia fininho. “Já sei! Você vai se chamar Caim… combina com você…”.
À noite, depois de rolar pela casa aos pés do homem, a caixa de papelão forrada e o jornal foram postos no chão do quarto. O homem se deitou na cama, e Caim, acomodado, ficou quieto na sua caixinha e dormiu a noite toda. De manhã, o homem sentiu que algo lhe pinicava a mão caída para fora da cama… era Caim que tinha acordado primeiro e mordiscava a mão exposta.
Iam já quinze anos desde o primeiro encontro entre Caim e o homem na calçada suja e movimentada. Caim cresceu e se tornou um cachorro de tamanho médio; o homem envelheceu um bocado. Todos os dias – menos quando chovia – o homem levava Caim para passear pelo bairro, de coleira. As crianças adoravam Caim, e ele também gostava das crianças.
Passeavam por um caminho fixo ao qual tanto o homem como Caim acostumaram pés e patas; um dia, um puxão diferente na guia da coleira… iam mudar de caminho. Atravessaram a rua e subiram a ladeira; eles nunca tinham passado por ali, Caim exultava com a cauda.
Ia caminhando à frente do dono quando, de repente, reconheceu algo no seu entendimento canino do mundo: aquele calçamento, aqueles pés. Estava novamente na calçada de onde foi recolhido; parou de abanar a cauda. E, por algum motivo que o cão desconhecia, o homem parou de andar. Caim estacou assustado e olhou ao redor; olhou para cima, para ver o dono, e viu que ele tinha as duas mãos à altura do peito e emitia um gemido contínuo… Caim começou a ganir; pressentiu algo.
O homem primeiro caiu de joelhos; tinha no rosto uma careta de dor e a última coisa que viu foi o desespero do cachorro. Ficou caído de bruços, com o rosto voltado para a direita. Caim começou a latir, sabia que tinha algo errado. Com as patas, raspava as costas e o braço do homem e gania. O homem ainda respirava. Começou a juntar gente; a primeira pessoa que tentou se aproximar, um senhor gordo, foi repelido por Caim, que tinha se transformando numa fera. Outra pessoa tentou se aproximar, outro homem, e foi repelido do mesmo jeito, pelos mesmos caninos à mostra. Caim agora era rosnados e dentes.
Várias pessoas o tentaram espantar, mas a sua ferocidade inaudita deixou as pessoas pasmas: “Olha, mas não é aquele cachorro da rua de baixo, que era tão calminho?”. O homem tinha parado de respirar. Tentaram, em vão, tirar o cachorro dali com paus e pedras. Tiveram que chamar, além do resgate, a carrocinha. Caim seguia ao lado do cadáver do homem, em guarda e rosnando, com os pelos das costas em riste como uma touça de palitos de dente.
Antes da ambulância, chegaram os laçadores do centro de zoonoses; se aproximaram com os laços reforçados e, de um golpe, conseguiram pegar o cachorro que se estorcia de ódio, entre ganidos e latidos infernais. As pessoas assistiam àquilo tudo assustadas.
Chegou o caminhão da medicina legal: a ambulância já não adiantava mais. Depois de tanta luta para defender o homem, Caim se deixou cair com o último latido lancinante. A última coisa que viu foi uma centena de pés calçados.
Dálmata
Me esqueci de enxaguar a boca com o desinfetante bucal. Acabei tomando só o café com leite; esqueci a marmita na geladeira. Tudo por causa de um morto, um morto há muito morto e que nem era deste lado do mundo. De novo Tuone Udaina me aparece nos pensamentos, abre passagem aos chutes: reclama pelo conto sobre ele, que comecei a escrever e nunca terminei, nunca passando da descrição de Bàrtoli, o linguista; não Bàrtali, o ciclista, mas Bàrtoli, o linguista. De manhã, cedinho, me veio à cabeça o homem velho, decrépito, sacristão e barbeiro que, no fim da vida, quando Bàrtoli o conheceu, babava em quatro línguas pela boca sem dentes. Inclusive uma língua que morreu consigo e tem um nome vagamente canino: o dálmata, língua aparentada do vêneto, um dia falada na costa oriental do Adriático. Udaina era o último falante vivo, embora não fosse nativo: tinha aprendido o idioma dos pais, que o tinham por língua-mãe. Foi por Udaina que Bàrtali pôde coletar as últimas informações sobre o dálmata; ele fez sua monografia na Academia de Viena com base nos dados do barbeiro desdentado. Udaina, como todo vivente, morreu; morreu quase caquético pisando em uma mina instalada por um anarquista. Perderam-se Udaina, o dálmata, o meu café da manhã e o enxágue dos meus dentes.
Bitucas
— Por que você não tem foto de perfil?
— Para as pessoas não deduzirem merda da minha fisionomia.
* * *
Por esses dias, indo para o trabalho, percebi que estamos já em período eleitoral: passei por uma rua atapetada de propaganda política.
E outra coisa: como gente feia gosta de se candidatar. É incrível.
* * *
Quando eu era criança e alguém mostrava algum produto ruim como importado, o que era índice de boa qualidade, o interlocutor logo lascava:
— Só se for importado da Barra Funda.
Havia sapatos italianos da Barra Funda e uísque escocês legítimo da Barra Funda.
Desconfio que a barra-fundização do produto de má qualidade é anterior à ascensão do Paraguai como origem de contrabando.
Mas, nestes tempos fajutos de VPN, a Barra Funda pode ser Nova York ou até Amsterdã.
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A intenção era falar um pouquinho de cada parte, mas depois do "Caim" não posso! Acabou comigo!
Hoje finalmente caiu a ficha. Acredito. Mas posso estar errado.
Enquanto lia (e saboreava o desenrolar do texto), fiquei a imagina-lo Kovávcs, diante de sua Olivetti (ok, ok, digitando no Word), com o cigarro aceso, metade perdido em fumaça, uma pausa, uma tragada (como só Hollywood sabia retratar), e olhos apertados em direção ao texto, sorriso maroto ("Ficou bom"), para então fazer das cinzas, em três leves dedilhadas (sinal de aprovação), cair no cinzeiro.
Seria mesmo de latão?