Cinzeiro 39, 21 de setembro de 2024.
Garoa
Eu sou paulistano, e paulistanos da minha idade, ou seja, com mais de quarenta, têm na lembrança dias, semanas até, que eram pura umidade: garoa fininha que caía por um tempo incontável, céu baixo e cinza, frio. A minha alma se moldou nessa umidade. Esses dias secos por que estamos passando são muito próximos da morte; com certeza o inferno que nos espera é seco e quente, como o bafo de uma airfryer.
Nesses dias úmidos da Paulópole, as mães, coitadas, se desesperavam porque a roupa não secava, mesmo depois de três dias pendurada no varal. A umidade grudava em tudo; havia o barulho dos pneus dos ônibus passando sobre o asfalto encharcado, as janelas embaçadas por conta da respiração, os guarda-chuvas, os vendedores de guarda-chuva na porta das estações de metrô, onde a umidade se misturava ao cheiro de milho cozido na manteiga. Manteiga, não: margarina. A visão da garoa fina na frente das lâmpadas da iluminação pública, ainda brancas, de vapor de sódio. Parece um passado remoto. Quando eu era criança, já era o fim dessa era: São Paulo já tinha sofrido a metástase do êxodo rural; eu mesmo morava nas bordas do câncer de concreto.
Me lembro bem de uma vez que, saindo do colégio, à noite, resolvi voltar de trem, do Brás para Artur Alvim, na época em que essa estação de trem, colada à homônima de metrô, ainda existia. Fui à estação do Brás com umas colegas que iam sentido Jundiaí; lá, errei a plataforma e, em vez de pegar a linha tronco, que atendia Artur Alvim, peguei a variante, que se separa da tronco na base da Penha. Percebi o erro quando o trem, abandonando a estação de Engenheiro Sebastião Gualberto, um pombal horroroso que, por sorte, não existe mais, começou a fazer a curva à esquerda, contornando a Penha pelo lado norte. A próxima estação, em que desci, era Engenheiro Goulart.
Era uma dessas noites frias, de vento e garoa. Não havia viva alma na estação. Desci e fiquei esperando o trem que ia me levar de volta a Sebastião Gualberto, última estação antes da bifurcação das linhas. Engenheiro Goulart era estação no nome, mas tinha estrutura de parada: parte da plataforma era descoberta e, a parte coberta o era com uma estrutura de concreto em forma entre T e Y, que lembrava um ponto de ônibus bombado; o vento passava por baixo dela e não havia como se reparar da garoa, que me molhava da cintura pra baixo. A estação, absolutamente vazia naquele horário, mais de 11 da noite, estava iluminada, mas com todo o entorno mergulhado na escuridão; parecia um porta-aviões no meio da noite do Atlântico. A umidade da chuva, do parque próximo e do Tietê chegavam ali. Eu estava no meu elemento; o frio e a garoa não me incomodavam, antes davam uma sensação de conforto e pertencimento que senti poucas vezes na vida.
O trem deve ter demorado uns vinte minutos e era daqueles que não fechavam as portas. A variante, hoje chamada linha 13 - safira, ainda era a mais problemática do sistema ferroviário de São Paulo. Havia inclusive o “vagão da fumaça”, onde, em determinados horários, como aquele em que eu estava pegando o trem, o povo da maconha se juntava para fumar um. Dei preferência a um vagão intermediário, cujas portas não se fechavam; por esse janelão improvisado vi vários matizes de escuridão se alternarem na garoa até chegar a Gualberto. Esperei mais um pouco aí e peguei o trem da linha tronco, continuando o meu caminho por Vila Matilde, Patriarca e, finalmente, Engenheiro Artur Alvim. A estação de metrô não tem o “Engenheiro”; o pobre funcionário da Central foi rebaixado. justo no país dos bacharéis. De Artur Alvim o prédio continua em pé, guardado por um segurança que tem uma cadeira de praia e fica tomando sol na plataforma, ou ficava; das outras, nem traço existe mais.
Os dias de garoa foram ficando escassos na terra que um dia foi dela, no alto da Serra do Mar. Não sei se foi o próprio crescimento da cidade, cuja ilha de calor gerada impede o surgimento da garoa, ou de algum tipo de alteração climática natural, mas eu sinto falta da umidade, da garoa. Um dia cinzento e de garoa me deixa feliz, me traz recordações.
Bitucas
Estou vendo gente mais à esquerda falando em teste psicotécnico para candidatos a cargos públicos. A coisa só melhora.
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Você vira as costas, e o maior evento político da década acontece. Já há rumores de que a Cadeira vai sair para o Senado em 2026.
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O fim do ano está aí. Que tal um pager de sete tiros?
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Uma revista especializada em fotos de fellatio chamada “Almamaque” parece uma boa ideia.
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É feio dizer que alguém tem um pezinho na cozinha, segundo o politicamente correto. Mas se eu tiver um pezinho na sinagoga? Muitos temos.
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É necessário inventar um dispositivo para os banheiros públicos que impeça o barulho da autolimpeza de chegar ao ouvido de quem está fora, nas redondezas.
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As nossas cidades todas têm quadras. Não seria mais coerente dizer “nas quadradezas” em vez de “nas redondezas”?
Saramago
Tentei ler o José Saramago algumas vezes. Na verdade, tentei o ler muitas vezes. Alguns livros, até duas, três, mas a leitura me parece insuportável e impenetrável. Comentei isso com um colega, na faculdade, e ele me disse o óbvio: que eu não tinha entendido o escritor. Me sentia burro ao não entender algo que era tão aclamado pelos meus colegas e pelo meio em que eu estava então inserido, a academia. Acometido pela síndrome de Estocolmo, cheguei mesmo a defender Saramago de outros que tiveram o mesmo problema que eu. A academia tem esse negócio de espírito gregário: tudo para se sentir acolhido, e eu era deslumbrado e intelectualmente carente. Enchi a minha estante com as obras do português. Se não li todas, li quase todas, ou uma fração próxima de sete décimos. Eu me forçava a gostar daquele mingau de palavras, das histórias triviais contadas em parágrafos de dez páginas, literatura engajada. Fui ao cinema ver “Ensaio sobre a cegueira”, filme horrendo. Eu era idiota.
Anos depois, já tendo deixado a casa paterna em São Paulo pelo Hinterland, eu precisava dar jeito na biblioteca que tinha largado para trás. Separei o que considerava essencial, pois trazer tudo era inviável: não havia espaço na casa nova. Olhei bem para a prateleira envergada de Saramagos. O trauma terminava ali: não ia levar os tijolos. Disse à minha mãe que se desfizesse deles, que os doasse à biblioteca, que os desse aos vizinhos. Não tenho coragem de jogar livro fora, por pior que ele possa ser; é uma espécie de fetichismo com o objeto. Durante um tempo, conviveram na minha estante um livro do Stálin e um manual de criação de peixes, livros que você ganha “porque gosta de ler”. São os outros limpando as suas prateleiras sobre você.
Ter dado fim nos Saramagos foi uma limpeza na alma; nunca mais me obriguei a ler nada por que chancelado pela academia ou pelo jornalismo especializado. Agora, eu era idiota só de meio período; não caía mais na esparrela, naqueles parágrafos emaçarocados. Aliás, chancelas que me fazem fugir de qualquer livro. Mentira. Fui ler “Torto arado” para tirar a teima. O mérito do Itamar é ser mais legível que o Saramago, embora o tom seja enfadonho da mesma maneira.
Se você gosta do Saramago, não precisa ficar bravo comigo. Você pode continuar lendo e gostando dele. Na verdade, não me importa nem um pingo. A única coisa que eu quero, no que me resta de vida, é não ser, ou me sentir, obrigado a ler um só parágrafo do Saramago; coisa que não hei de fazer mais nem com uma arma apontada na cabeça.
Garrafas
A meia-idade chegou para mim. Não com o despontar de uma hemorroida, como uns e outros gostariam, mas com saudosismos e manias. O maior exemplo é esta news, que se tornou o cantinho de alguém que chora pelo seu passado. Ao fim e ao cabo, nós criticávamos os nossos pais porque eles tinham saudades dos anos setenta, dos Beatles, do Roberto Carlos e da boca de sino. Mal percebemos e estamos trilhando o mesmo caminho.
Eu, que nunca gostei do Roberto Carlos, do Elvis e nem da música da minha juventude, tenho saudosismo de coisas estranhas e desenvolvi um monte de manias. A mais recente é a cerveja em garrafa. Cismei que o gosto da cerveja em lata é diferente da que vem na garrafa de vidro. Quase certamente não é, mas o alumínio da lata, em contato com a boca, deve dar alguma reação envolvendo corrente elétrica. Ou, muito mais possivelmente, é alguma loucura. Fato ou mito, voltei à garrafa de vidro, como faziam os nossos ancestrais.
Justifiquei a escolha aos circunstantes com a questão de não gerar lixo. É uma meia verdade: não me pega a histeria do politicamente correto, mas a quantidade de restos me incomoda; cada três dias tiro de dentro de casa um saco de 80 litros com recicláveis. A garrafa vai e volta; a lata vai para o lixo; mesmo que vá para o reciclável, o volume de lixo me incomoda.
Por sorte, eu tinha umas garrafas de 300 ml, dessas bojudinhas, simpáticas. Onze delas, mais uma de 600 ml. Eram doze de 600 ml, mas quebrei a décima segunda não sei quando ou como; sei apenas que a quebrei. As compras vinham decorrendo bem; se você tem menos de quarenta anos, é assim: chegando ao mercado, você deixa as garrafas num balcão, e o atendente lhe dá um recibo. Você leva tantas cervejas quantas garrafas trouxe. É simples. Ou deveria ser.
O problema é que as companhias agora (ou eu não tinha percebido antes). Não aceitam as garrafas umas das outras; numa compra, tendo encontrado uma promoção de outra marca, peguei metade das cervejas de uma companhia e metade de outra. Na compra do dia seguinte, a mocinha do balcão me informou que, como era metade de cada companhia, eu só podia pegar cervejas naquela proporção. Eu lhe disse que, no dia anterior, todas as garrafas que eu havia trazido eram da companhia x, mas eu tinha pegado também da companhia y e ninguém tinha me dito nada. Vi que ia deixar a atendente em maus lençóis, pois elas costumam ficar meio macabeias nessas situações, e deixei pra lá. Bebo cervejas tanto da companhia x como da companhia y; só as da z me são realmente intragáveis, e a companhia w não usa garrafas retornáveis, esses sujos.
É assim: você tenta fazer algo “para ajudar o planeta” ou outra papagaiada do tipo, e aparecem os burocratas; não a moça do mercado, mas o engravatado que criou a regra, que, aliás não existe para a garrafa de 600 ml, mas só para a de 300 ml. Essas regrinhas ridículas me apodrecem a alma mais que os desmandos de juízes carecas, porque é algo que entra no seu dia a dia por capilaridade. Agora estão pondo portaria eletrônica no prédio onde vivo, o que significa a instalação de parafernália no condomínio e a necessidade de baixar um aplicativo que tem mil telas e é extremamente porco. Todo santo dia, ao sair para o trabalho, me deparo com o síndico “ajustando pormenores” de portaria e sistema. Não aguento mais o ver; ele e a sua cara cansada. Poveraccio, não sabe em que arapuca caiu: vai virar refém daquele negócio, como se ser apenas síndico já não fosse algo penoso. Entrar no prédio tem dado mais trabalho que passar na alfândega do aeroporto.
Fujo dessas coisas, de garrafas e portarias, mas há casos em que não dá. Como vou entrar em casa se não fizer o cadastro da cara na portaria, se não baixar o aplicativo? Aí a revolta é inútil. E outra: teve gente que, no fim, achou tudo uma boa ideia: foi tudo aprovado na reunião do condomínio.
Esse controle capilar, essa tirania miúda, essas regrinhas do tamanho de grãos de areia é que, no fim, nos matam aos poucos, que nos tiram as forças. Você quer ler, mas tem a reunião de condomínio depois do trabalho. Tive que ir à última para dar quórum: larguei comida, criança e o conforto do lar para ouvir um vendedor terrivelmente agressivo (o cara da portaria eletrônica) vender o seu produto com um tom de inspetor de alunos irritado, como se acusasse alguém em vez de vender algo. Quando eu pensei em lhe perguntar se ele usava esse tom de voz em todas as vendas que fazia, chegou um vizinho, e deixei a reunião, já que tinha janta para terminar, filhos para dar atenção e um tempo livre, mínimo, para usufruir. O maior crime que podem cometer contra a minha pessoa é me roubar tempo com conversa mole.
Vamos todos morrer com essas coisas entaladas na aorta. E a coitada da moça perdida entre garrafinhas da companhia x e da companhia y. Eles não pensam, mas os burocratas deveriam pensar um pouquinho nas pontas do processo.
Wan Wi
No Rio de Janeiro, no final do século XIX, uma família visitava uma atração recém-chegada da Argentina, o Zoológico das Nações, uma espécie de circo onde os visitantes podiam ter contato com vários povos do globo. Pãe, mãe e uma criança de uns dez anos passaram diante da jaula que abrigava um chinês, vestido de chinês; as paredes, pintadas com trompe-l'œil, imitavam uma casa chinesa. Toda vez que via um visitante, o chinês corria na direção das barras e berrava, desesperado:
— Wan Wi cagou! Wan Wi cagou!
O pai, sensibilizado, se foi queixar ao responsável pelo circo.
— O senhor tenha piedade desse chinês, o Wan Wi, e lhe dê uma muda de roupa limpa; ele se queixa de estar sujo com as próprias necessidades [era um homem educado, bacharel em direito; jamais diria “cagado”]. É anti-higiênico e depõe contra a sua atração. A entrada custa 10 mil-réis; um mínimo de higiene é necessário! O senhor Cruz não gostará de saber…
O responsável, homem bonachão e de carnes fartas, respondeu rindo:
— O senhor não precisa se preocupar; ele não está cagado e nem se chama Wan Wi. É que a polícia, há uns quinze dias, o achou vagabundeando no porto sem documentos; como consideraram que seria complicado manter um estrangeiro indocumentado na cadeia pública, no-lo emprestaram para a exposição. Na verdade, ele grita a todos que se aproximam “one week ago”, “há uma semana”, segundo o reverendo inglês que nos visitou ontem; desconfio ainda que ele não conheça a palavra inglesa para quinzena, que também ignoro. Esses bárbaros, nem para aprender o francês comme il faut. Enquanto não o vierem buscar a polícia ou a embaixada, ele vai ficar aí, fazendo número.
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