Cinzeiro 42, 12 de outubro de 2024.
Formação
Os seus assuntos pessoais não interessam se você não for uma celebridade; e há intimidades célebres que é de bom-tom evitar. Mas, como agora somos muitos nesta newsletter, pouco mais de 350, parece conveniente trazer parte da minha formação literária. Pelo menos pode render um texto interessante. Não pretendo, e nem quero, dar pitacos sobre escrita, ou que essas linhas sejam interpretadas como sugestões que devam ser seguidas. Claro, caso você tenha curiosidade de ir atrás de algo, que vá. Só não venha me cacetear depois.
Sempre li bastante, mas sou leitor disléxico. Não é difícil eu ler três páginas de algo e ter que voltar porque perdi o fio da meada. Também é comum eu me esquecer quase completamente de livros lidos há dez, quinze anos; aí eu os ponho na lista de releitura. Aliás, tenho mais relido do que lido nos últimos tempos. O bom dessa amnésia é que eu sempre me surpreendo; a releitura dificilmente é entediante.
O percurso literário é acidentado porque envolve tentativas e erros; cidades muito visitadas e lugarejos que jamais serão vistos de novo. E foi esse percurso que influenciou a minha escrita de hoje, que é diferente daquilo que eu escrevia há dez anos e brutalmente diversa dos textos de quinze anos atrás. Ainda bem.
Comecei a ler cedo; fui uma daquelas crianças esquisitas que se alfabetizaram sozinhas, sem que ninguém tenha feito nada. Há uns casos por aí. Uma vez, um amigo me disse que isso era uma evidência da minha origem alienígena, por conta do meu fator Rh negativo. Conclusões amalucadas são meu fraco: adoro. Por ter seis anos e saber ler, a minha mãe, grande leitora, disse que era importante eu ler algo “de conteúdo”; ela achou uma boa ideia me dar “A Escrava Isaura”, do Bernardo Guimarães, como primeira leitura “séria”. Tudo que me lembro da história são memórias posteriores à leitura, por conta da novela feita pela Globo. Embora, na época, a leitura não me tenha sido uma tarefa penosa. Nunca o reli e, depois que entrei em contato com o romantismo brasileiro, o risquei completamente da lista.
Durante o final da infância e o começo da adolescência, fui lendo o que tinha em casa. O meu pai trabalhou uns anos no departamento de contabilidade de uma editora que sempre dava exemplares de cortesia aos funcionários, e a minha mãe, de solteira, tinha sido sócia do Círculo do Livro. Foi em casa que conheci Guareschi: na nossa biblioteca tinha “Dom Camilo e seu pequeno mundo”, na tradução do Rolando Roque da Silva, que era colega de trabalho do meu pai. Aliás, a Olivetti Studio 44 que tenho em casa pertenceu ao tradutor e poeta: o meu pai a comprou do seu Rolando. Foi em casa que li o primeiro Saramago, “Memorial do Convento”, provavelmente a primeira edição lançada no Brasil. E também “Exodus”, do Leon Uris, e “Meninos do Brasil”, do Ira Levin, que conseguiu, na ficção, acertar que Josef Mengele estava no Brasil. Em casa havia ainda “Seara Vermelha”, do Jorge Amado, único livro dele que li, e “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Dom Casmurro”, os meus primeiros contatos com o Machado. Mais tarde, na faculdade, eu acabaria lendo “Ressurreição”, que é um Machado embrionário e ao gosto do público da época; mais recentemente li “Esaú e Jacó” e gostei muito.
Li também muita coisa que esqueci. Livros delirantes de malucos esotéricos. “Amerríqua: as origens da América”, do Domingos Magarinos, é um dos meus prediletos. Me lembro que o comprei na única vez que estive em Ubatuba. Sim, estava chovendo e eu precisava de leitura; o “Amerríqua” estava num desses expositores de livros que se parecem com uma gaiola. E li outro, cujo título me foge, de uns gringos, que tratava de crânios de cristal. Segundo os doidões, esses crânios, esculpidos pelos povos meso-americanos, eram, por assim dizer, pen-drives, dos quais somos ainda incapazes de extrair o conhecimento ali armazenado. O livro patinava terrivelmente e não chegava a conclusão alguma; parecia uma viagem de ácido. Provavelmente era mesmo.
Comecei a ler mais no segundo grau. Uma professora de Língua Portuguesa pediu que lêssemos “O morro dos ventos uivantes”, da Emily Brontë, talvez a primeira leitura que eu tenha classificado como “chata” na minha vida. Tive que ler os do vestibular: só me lembro de “Macunaíma”, do Mário de Andrade, que é engraçado, mas não a obra-prima que dizem ser. Achei uma merda completa na primeira leitura, mas, obrigado à releitura na faculdade, me pareceu mais agradável. Também li nessa época Eça de Queirós, “O crime do padre Amaro”, mas prefiro “A Ilustre Casa de Ramires” e “A Relíquia”, livro este engraçadíssimo.
Fiz Letras, logo tive que ler bastante, mas muito texto de teoria literária, o que considero uma punição, uma leitura enviesada que se arrasta tardonha. Na faculdade de Letras se cobrava muito a leitura desses textos e quase nada a leitura das obras. Fiz monografias de quinze páginas apenas lendo textos teóricos, puro filistinismo, principalmente nas matérias de literatura brasileira e portuguesa, que, aliás, me deixaram poucas recordações, quase nada. As aulas de literatura italiana nos cobravam mais a leitura das obras; foi nelas que conheci Italo Calvino, Alberto Moravia, Primo Levi, Giovanni Verga, Lampedusa, Pirandello, Dante, Petrarca, Boccaccio. Foi nelas também que um professor, mezzo buona gente e mezzo sciagurato, disse que “Guareschi não era literatura”. Por sorte não liguei. Fiz uma disciplina optativa que me apresentou Borges, embora eu tivesse a “Nova Antologia Pessoal” em casa, também na tradução do seu Rolando. Borges me fez preferir a narrativa curta. “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” e “O Imortal” são contos centrais para mim. Prefiro Borges a Cortázar, embora “Bestiário” seja um livro sem defeitos; “Casa tomada”, conto desse livro, ainda me deixa assombrado.
Li alguns russos: Tchékhov, de quem gosto, Dostoiévski e Tolstoi, que me parecem sempre muito graves e psicológicos e são muito densos.
Dando aula de redação e literatura fui obrigado a ler muita coisa detestável, como autores da África Lusófona. A leitura obrigatória é quase sempre enfadonha. Estou falando de gosto; o valor eventual, o deixo aos leitores ideológicos. “O Cortiço”, do Artur de Azevedo, me desceu quadrado. “Quarto de Despejo”, da Carolina Maria de Jesus é de interesse mais sociológico que literário. José de Alencar me soa falso com os seus índios de tragédia grega; “Iracema” e “O Guarani” são enjoativos, mas “A Guerra dos Mascates” é bom.
Foi com amigos que conheci o que realmente me formou: Curzio Malaparte, Kurt Vonnegut, Umberto Eco, Inácio de Loyola Brandão, Diogo Mainardi, Flann O’Brien, Rubem Fonseca, Dezső Kosztolányi, Franz Kafka.
Malaparte ocupa uma posição central no meu panteão. Não há como entender a situação das coisas na época da Segunda Guerra sem “Kaputt” e “A pele”. “Don Camalèo”, em que um camaleão aprende a imitar os humanos e termina se crendo Jesus Cristo enquanto é massacrado pela multidão furibunda, tem um sabor especial. As descrições de Malaparte têm um toque sensorial imenso; é possível sentir cheiros durante a leitura, conforme o texto flui. Fico estarrecido em ver como os italianos não o consideram o escritor central do século XX na literatura italiana. Muitos lá até o desconhecem, embora os Correios Italianos o tenham homenageado com um selo, em 1987, trigésimo aniversário da sua morte. Polêmico pelas posições políticas durante a vida, Malaparte deixou também um volume de crônicas, “Battibecco”, excelente, mas acho que sem tradução entre nós. E como não lembrar de “Técnica do Golpe de Estado”, ensaio sobre a psicologia da tirania que lhe rendeu problemas, pois um exemplar foi achado no escritório de Engelbert Dolfuss, o chanceler austríaco assassinado pelos nazistas.
E são as leituras que influenciam a escrita; não há como escrever sem ter lido. Todas as influências viraram uma massa informe na minha cabeça e foram dando origem à minha escrita. Também considero ser influenciado pelo Orlando Tosetto, que é o único medalhão citado com quem tenho amizade; além dos textos, é sempre assertivo em conselhos de áreas variadas. Parei de prepor os adjetivos aos substantivos por influência sua, já que, de fato, é uma desnecessária e ridícula afetação na maioria dos casos. Talvez ele encare a citação como ofensa, mas não vai me dizer.
Também li muito Bukowski, mais a prosa, embora eu não faça parte do famdom chato e irritante. É interessante e basta. Poesia, no geral, me foge um pouco. Dante, Petrarca, Camões. Li pouco Drummond e prefiro o cronista ao poeta, remando contra a maré. É pecado que não tenhamos mais uma cédula com o rosto dele como os 50 cruzados novos de 1989. Era merecedor da homenagem, agora com a moeda relativamente estável.
Pela leitura descobri o gosto pelo fantástico e pelo estranho, pelo incomum, pelo absurdo com retrogosto de humor, que não se dá pelo uso malabarístico da linguagem, como eu pensava no começo, mas pelas situações descritas. É possível escrever um conto surreal sem apelar ao exotismo linguístico ou ao pernosticismo. O uso de um termo incomum precisa ser justificado.
Mais recentemente, entrei em contato com as obras de Paulo Francis, Ivan Lessa, Murilo Rubião, Giorgio Manganelli, István Örkeny, Trilussa, Campos de Carvalho, Alexandre Soares Silva e Gandolin. “La famiglia De-Tappetti”, do Gandolin, o li durante o período em estive visitando Pádua; o apartamento em que fiquei tinha uma biblioteca pequena. Lembra uma obra meio esquecida nossa, “A Família Agulha”, do Luís Guimarães Júnior. Li “Dom Quixote” não faz muito, fechando uma lacuna na minha formação; tem passagens muito divertidas. Também foi recente a leitura da “Eneida”.
Sempre vai faltar algo. Devo ter uns trinta anos de vida para correr atrás do que falta, se for da minha vontade; e há coisas que se lê por aí que não me fazem falta. Pode ser que eu tenha me esquecido de algo nesse catálogo das naus, mas fica para a próxima.
Bitucas
Há gente que leva frutas para passear. Em nome de uma dieta mais saudável, o fulano coloca uma banana ou uma maçã na mochila e a leva para o trabalho, para comer ou no meio da manhã ou no meio da tarde. É muito comum a fruta ir e voltar na mochila, porque hábitos novos são difíceis de incorporar.
Deixo as frutas em casa, mas é comum eu levar livros para passear. Me programo para ter uns momentinhos dedicados à leitura, mas algo acontece. O livro vai e volta sem ter sido aberto.
* * *
Com alguma exceção (e sempre há), o autor lendo a própria obra em voz alta, para uma plateia ou em gravação, é decepcionante. Aqui em casa há, ou havia, um CD com o Drummond lendo alguns dos seus poemas, com um pianinho de fundo, o que dava um ar de telemensagem à coisa toda. Quando ouvi, uma vez só, me deu vergonha alheia.
O duplo
As pessoas vão ao litoral para se divertir, dizem elas. Descem com os seus carros de suspensão rebaixada, rodas prateadas e música ruim no último volume. É por isso que, quando desço com a minha família, procuramos locais mais afastados. Somos uma família tranquila. Nada de foguetório, nada de sobressaltos ou ímpetos de raiva. E as nossas viagens de veraneio também são tranquilas: sem televisão, só o rádio. Vamos à praia e voltamos. Os meninos são mais noturnos, vão atrás das moças, porém são mais tranquilos que a maioria dos da sua idade; não me dão trabalho e, de quando em quando, trazem alguma moça simpática para almoçar. A minha esposa fica melhor, pois a ajudo com as tarefas da casa e tudo fica mais fácil. Eu trago a máquina de escrever; é do que preciso para continuar a redigir as cartas. Pego os endereços na lista telefônica ou de outra fonte qualquer, cartões de visita, panfletos. Pego os endereços, redijo as cartas, sobre qualquer assunto, apenas para lhes dar a forma de carta, umas dez por dia, e as ponho no correio. Às vezes, respondem; muitas vezes não.
Sempre alugávamos a mesma casa. Até que, com as minhas rendas de burocrata, a compramos. É afastada da cidade, mas de acesso fácil. O que importa é que ela não faz parte do continente de casas, como uma ilha bem próxima da península, e aqui ficamos, entre o mar e a mata, ouvindo as ondas e os grilos. Na verdade, nos mudamos de São Paulo para cá; os meninos ficaram na capital porque estudam, mas eu e a esposa resolvemos ficar aqui. Qual a necessidade de dois aposentados imersos no mar de gente a não ser aumentar o mar de gente? Aqui somos nós, com os turistas lá longe e as galinhas do vizinho sitiante. Sim, há vizinhos, mas poucos; são chácaras. As galinhas vêm no meu quintal atrás de bichinhos. A máquina de escrever, uma Olivetti velha, agora tem seu lugar de honra; comprei uma escrivaninha só para ela e não deixo que Olívia ponha sequer as suas toalhinhas de tricô junto, sob ou sobre a máquina. Pedi ao Marcelo que me trouxesse fitas de máquina de São Paulo, umas trinta, para que eu não seja pego desprevenido pela ausência repentina do insumo. Dez cartas por dia. Continuo mantendo a média. São as minhas histórias, para que, um dia, juntas, possam me recompor no futuro, numa lufada do acaso. Acabo as cartas, todas batidas em duas vias (e também mantenho em níveis confortáveis o estoque de papel-carbono). As originais vão para o correio; as cópias, para um arquivo metálico.
Dez cartas. E faço isso há muito tempo. Aliás, hoje faz exatamente trinta anos que comecei a escrever dez cartas diárias. No fim da manhã de hoje, na última carta, coloquei o número de registro: 109.570. Dez cartas, mas que não me tomam muito tempo; as mais longas não têm mais de dez linhas. Tomo café e levo a xícara para a mesa; me sento à escrivaninha, arrumo a máquina, alinho o papel e os meus dedos começam a socar o teclado, sozinhos. Não sou eu quem redige as cartas. Tampouco alguma força do além, pois não acredito nisso. Não conto nada disso a Olívia, pois vai dizer que sou louco e, se eu insistir no assunto, vai morar com os meninos. Ela sempre pergunta o porquê; lhe digo que são romances, crônicas, poesias. Mantenho os arquivos fechados. Olívia pergunta por que o arquivo fica trancado; respondo que é por causa da naftalina que ponho para que as baratas não entrem lá. Não deixa de ser verdade. Começo: Peruíbe, 19 de março de 1999. Uma, duas, três linhas, tabulação três e meio. A/C De Laurentiis Perfis Metálicos S/C. Linha, parágrafo. Caros Senhores. Linha, uma, duas, três, parágrafo. É com incomensurável prazer que vos redijo as linhas que brotam dos meus míseros dedos e que contam com a vossa humilde batida d’olhos. Parágrafo, linhas, uma, duas; abre aspas. Certa vez, quando eu ia à cidade nova, dois anjos começaram a seguir o carro, mas não eram exatamente anjos. Usavam terno e óculos de aros redondos e chapéu. Fizeram-me parar o carro. Desci do automóvel e um deles, esticando-me um libelo disse, dois pontos, abre aspas. Toma e lê. Ponto. Fecha aspas. Lembrei-me de Santo Agostinho. Será uma revelação? Mas não consigo lembrar-me de que livro se tratava. Parágrafo, duas linhas. Cordiais saudações na espera de pronta resposta, subscrevo-me.
Poucas das minhas cartas tiveram resposta, das quase 110 mil que mandei, umas trezentas foram respondidas, mas nem sempre de modo adequado. Algumas empresas me mandaram catálogos dos seus produtos, sem fazer menção à carta enviada; mesmo sendo respostas inadequadas, mantenho todas catalogadas. Poucas vezes me aconteceu de enviar cartas para endereços repetidos; talvez tenha acontecido uma ou outra vez. Escolho endereços de todas as partes do mundo, com preferência pelos países de língua portuguesa. Muito de vez em quando, minhas mãos se decidem por escrever alguma carta em inglês, francês ou italiano, mas eu, funcionário público, nunca pensei em aprender nenhuma dessas línguas. Tenho respostas das mais variadas e somente duas correspondências habituais. Uma é com um encarregado de compras de uma firma de brindes. Conversamos sobre os mais variados assuntos, sempre pendendo para o fantástico. Mando-lhe uma carta e ele me responde; e eu respondo de volta. É possível dizer que se trata de uma história imensa, visto que trocamos já mais de cem cartas. Num papel solto dentro da última carta, ele disse que pretende vir me visitar quando for oportuno.
Desde a morte de Olívia minha vida não tem sido nada mais do que as cartas. Quase cheguei atrasado ao seu enterro porque antes passei na agência dos correios e havia só um guichê atendendo. Fiquei triste de dar minha companheira de trinta e cinco anos à terra salobra do cemitério à beira-mar. Os meninos vêm me ver de quinze em quinze dias. Nunca me deixam sem papel, carbono ou folhas de sulfite, nem que as mandem pelo correio. Nos últimos tempos, pus uma mesa de ferro no quintal de casa e, à sombra das árvores do terreno, me ponho a escrever. Já não escrevo com a mesma força: das dez cartas diárias, média mantida por trinta anos, agora, fico, no máximo, nas três ou quatro por semana e preferencialmente aos meus dois correspondentes: o encarregado de compras e o advogado. O encarregado, que tinha prometido vir me visitar, nunca apareceu, mas continua mantendo a correspondência, se bem que mais espaçada. Mais assíduo é o advogado que, no rodapé das cartas, sempre manda alguma notícia pessoal, sobre os seus filhos e sobre a sua esposa. E eu, somente a ele, lhe mando notícias dos meus meninos e lhe recordo de como era carinhosa a minha Olívia. Esse nunca prometeu uma visita.
Além das cartas, me dediquei a outras coisas; à leitura, principalmente. Li de tudo: grandes clássicos e livros de que ninguém nunca ouviu falar. A minha biblioteca não tem muitos exemplares, mas os meninos sempre trazem algo curioso que garimpam nos sebos da capital. Certo dia, o meu mais novo trouxe um livro que me intrigou bastante. Tinha a capa amarela, um amarelo sólido. O título, em letras vermelhas e solitárias, gritava no meio do mar amarelo: “Correspondência”; separei para começar a leitura. O menino saiu, lhe dei as advertências costumeiras para que tomasse cuidado com o nevoeiro da serra e com a estrada. Fui preparar a janta, e o livro, com aquele amarelo magnético, me puxou pelos olhos. Abri e comecei a lê-lo. Os textos eram todos em formato de cartas e, qual não foi a minha surpresa quando comecei a reconhecer trechos das minhas cartas. Eu ainda não poderia afirmar que eram as minhas cartas, mas havia trechos muito parecidos, inclusive no estilo de escrita; eu tinha quase certeza de que eram as minhas cartas. Mas quem as poderia ter caçado nos vários remetentes para as reunir num volume e com o seu nome, não o meu? Aliás, não as escrevi para que fossem publicadas. Corri ao arquivo e procurei as cartas enviadas aos meus dois correspondentes — as únicas separadas por remetente. Cheguei à conclusão de que havia sido o encarregado o autor daquele embuste, embora os nomes de autor e correspondente não batessem. Fiquei decepcionado com aquela traição de anos, o sentimento de que eu tinha sido, por anos e anos, enganado, enquanto as minhas cartas iam sendo compiladas e alteradas, ao bel-prazer do meu correspondente maníaco que, provavelmente, no escuro da sua alcova imunda, as recortava, colava as palavras e trechos como lhe parecesse mais conveniente e colava tudo.
Continuo escrevendo apenas ao meu único correspondente, o advogado. O outro, não; escrevi que tinha descoberto o livro e ele ainda teve a audácia de me responder. Mas a sua carta não se juntou às tantas outras suas no arquivo: foi entregue à chama da vela; virou esturro. Pela primeira vez não respondi a uma carta a mim enviada. Não houve outra daquele encarregado, ou sabe-se lá o que realmente ele era.
Um tempo depois da queima da carta, numa noite abafada e quente que terminou em dilúvio, eu admirava os raios no céu quando vi um carro parar diante do meu portão; imaginei que fosse algum turista para pedir informação. O homem, de capa de chuva amarela, desceu do carro e olhou para mim do portão; veio até a porta e eu a abri. Tirou o chapéu e me cumprimentou, recitou meu nome e meu sobrenome, como se cantasse, se aquele que atendia por tal nome ali morava. Desconfiado, eu disse que sim. Eu não recebia visitas, ainda mais de gente estranha que sabia o meu nome de cor; não me passou pela cabeça que poderia ser algum dos meus destinatários. Identificou-se: era o advogado. Fiquei emocionado: pedi para que se sentasse, que eu faria um café. Era um homem parecido comigo mesmo; tínhamos quase a mesma idade: só três meses de diferença. Conversamos bastante e já anoitecia quando seu rosto ficou grave e ele anunciou a intenção da sua visita: ele estava com um tumor no cérebro e não lhe restava muito tempo de vida; ele tinha de descer e conhecer o homem com quem trocou tantas cartas por tanto tempo. Fiquei triste, e os olhos do advogado ficaram rasos. Textos tão líricos eram os seus. Pedi que se levantasse e me acompanhasse até o fundo da casa. Lá estavam os vários arquivos que continham todas as cartas enviadas; abri uma das gavetas e deixei que ele mexesse. Puxou uma, duas, uma terceira e parecia não acreditar no que via. Perguntou se eram obra minha e eu assenti com a cabeça. Sentou-se na cadeira olhando-me e percebeu que tinha diante de si a máquina de escrever. Pegou uma folha, a enfiou na máquina e começou a escrever. Bateu uma carta longa. Retirou-a da máquina, dobrou-a em três, a pôs na minha mão e nos despedimos. Pegou o seu carro, e saiu de ré pela rua estreita.
A visita do advogado me deixou intrigado; não pela visita, mas pela carta que, há dias, eu relutava em desdobrar. Dei longos passeios pela praia. Pelos meses que se seguiram, continuei a me corresponder com o advogado, sempre cortês e sempre dum lirismo fantástico nas suas cartas-soneto e cartas-novela; ele, porém, não me perguntou se eu havia lido a carta que ele tinha datilografado aqui mesmo e me entregado nas mãos, como um pássaro machucado.
A vida tinha sido boa até aí; continuei como tinha feito até então. Mas, certo sábado, quando apaguei as luzes da sala para ir dormir, ouvi um barulho de pés sobre a grama. Havia alguém no quintal; não tenho armas, nunca as tive; me armei da barra de ferro que serve para abaixar os toldos das janelas: ferro fino, mas, se destro, era morte certa. Com somente a luz do abajur do quarto, uma luz fraquinha e amarelada, vi que o vulto se aproximou da porta de vidro da entrada e, notei, surpreso, com um molho de chaves. Tirei a lanterna que tinha posto no bolso do roupão e mirei o facho no rosto do vulto. Era o meu rosto! O vulto, surpreso, se pôs a correr. Tentei abrir a porta para segui-lo, para saber que raio era aquilo, mas as minhas mãos não conseguiram tatear as chaves na gaveta, agora que a lanterna tinha caído e seu facho inundava o chão. Corri à janela da frente e vi que o vulto já tinha alcançado a rua. Achei as chaves, saí e só um vento quente batia nas folhas das árvores. Nada do vulto. Fiquei quase uma hora olhando para fora, com as luzes da casa apagadas. Depois de um tempo, o cansaço me sugeriu que eu tinha imaginado aquilo tudo. Coisas de quem vive só.
Depois de uma noite mal dormida, cheguei à conclusão óbvia de que o ocorrido da noite anterior tinha sido um sonho. Um sonho, ou pesadelo, gerado por uma mente cansada. Peguei o regador largado num canto da sala e fui regar as plantas do jardim. Eu estava já regando as plantas quando vi um brilho, um reflexo no meio de um vaso de samambaias. Era um molho de chaves; o meu molho de chaves. Enfio a mão no bolso, e o meu molho de chaves estava no bolso das minhas calças. Eu tinha dois molhos de chaves nas mãos, idênticos: as três chaves das portas, mais duas de cadeados, as dos arquivos, que são seis pequenas, o chaveiro de metal imitando a silhueta de um coqueiro, o cortador de unhas. Levei tudo para dentro e comparei item por item; até mesmo a sequência que as chaves foram enfiadas no aro do chaveiro era a mesma. Dois molhos idênticos. Então a aparição não tinha sido um sonho. Alguém tentou entrar em casa e, num instante, por causa da luz forte e confusa, vi meu rosto na cara de um ladrão vulgar. Mas e as chaves? Como esse molho poderia ser idêntico ao meu, sem tirar nem pôr? Sobre essas coisas não se fala, e, se estão longe das vistas, deixam de existir. Por isso, tranquei o molho duplicado no arquivo maior.
A tentativa de esconder o molho de chaves largado por alguém que muito se parecia comigo não deu certo. Mal eu fechava os olhos e meus sonhos reproduziam a noite fatídica, com minúcias e a sensação angustiante de que já se sabe o que vai acontecer. O molho de chaves duplo estava lá, afundado na ferrugem do arquivo, enferrujando, ao contrário do molho que eu mantinha comigo. Mas parece que, cada vez que eu me distraía, escutava um tilintar de chaves vindo do arquivo. É claro que era coisa da minha cabeça, mas as alucinações auditivas são estranhas porque parecem mais reais que as visuais, e porque as visuais podem ser verificadas, enquanto as sonoras se esfumam no tempo e não voltam, deixando a impressão do real na percepção. Quando me distraía olhando o mar, ou já de água até a cintura, como num único golpe, pela superfície da água, eu escutava o tilintar. Todo barulho de natureza metálica me remetia ao molho que chaves que se desfazia, carcomido pela umidade e pela maresia. Até que um dia, estando o meu filho mais velho em casa, preocupado comigo, ele me disse que eu estava estranho, com um olhar preocupado, e perguntou o que me afligia na minha vida tranquila de aposentado. Ri. Disse que não era nada, mas, no mesmo momento, senti uma dor imensa no peito e no braço esquerdo. Era um infarto. Quando o meu filho percebeu que a força da dor tinha me deixado de joelhos, me pôs dentro do carro e me levou para a Santa Casa de Santos.
Não vi o caminho para o hospital porque a dor tinha me desacordado. O meu filho disse que foi complicado, porque, sendo final de semana, havia muita gente e muito trânsito. Acordei umas horas depois, totalmente anestesiado, num quarto da Santa Casa; eu só via, não ouvia. Vi meu filho mexendo a boca para um vulto que estava na porta. Dormi de novo, um sono pesado e sem sonhos. Acordei pela segunda vez. Outro quarto de outro hospital. Agora eu ouvia, e ouvia um rumor abafado de carros. Os meus filhos estavam ao pé da cama e perceberam que eu tinha acordado. O golpe de aortas por pouco não tinha sido fatal, e precisaram me trazer correndo para São Paulo; subi a serra de ambulância. Estava na UTI do Hospital do Coração e fui submetido a uma cirurgia para pôr pontes. O médico creditou o meu ataque a um estado de tensão contínuo e crescente, e os meninos tentavam arrancar de mim o motivo do nervosismo num lugar tão tranquilo. Me lembrei da chave, depois de todos esses dias de escuridão e anestesias. Senti uma fisgada, não exatamente no coração, mas na vesícula biliar, pois foi uma raiva súbita. Algo disso transpareceu no meu rosto, pois os meninos acharam melhor ficar quietos.
Fiquei três meses no apartamento em que morei antes de me aposentar, hoje ocupado pelo meu filho mais velho, a sua esposa e os meus dois netos. Antes de sair para trabalhar, o escutei recomendando aos pequenos que não fizessem bagunça, pois “o vovô está se recuperando”. Depois de algum tempo, tive autorização médica para dar umas voltas pelo quarteirão e, devagar, ia recuperando o ritmo da minha caminhada. Cada dia ia mais longe, passando por ruas desconhecidas e entrando em lojas de todo tipo. Certa noite, estava eu no quarto, e o meu neto mais novo, com quem eu estava dividindo a habitação, já estava dormindo, cismei de mexer na minha mala e achei, sufocada na pressa com que o meu filho recolheu meus pertences, uma folha de papel sulfite datilografada e dobrada em três. Era a carta do advogado. À luz do abajur, comecei a ler, finalmente. Não era um texto literário, mas uma carta batida em espaço um, com períodos intermináveis e sem parágrafos. Peguei meus óculos e comecei a ler. Era um agradecimento formal às alegrias que eu lhe tinha proporcionado com as cartas, com a nossa troca de correspondência, que tinha ficado feliz em me conhecer antes de morrer e mais uma enfiada de sentimentalismos. No final, a última linha solta abaixo do corpo do texto dizia: “Cuidado contigo”. Uma forma estranha de dizer a alguém que tome cuidado, que seja feliz, etc., mas posta de maneira estranha. Não era “atenciosamente” ou “cordialmente”, ou algo mais efusivo: “abraços fraternos”. Era só “Cuidado contigo”.
Chegou o dia de partir; resolvi ir sozinho, não queria mais dar trabalho aos meus filhos. O mais velho chegou a ficar irritado, porque eu queria descer de ônibus e ponto. Pedi que somente me deixasse no Jabaquara; de lá eu pegaria o ônibus. Eu estava bem, muito bem, pronto para outra. Relutante, ele concordou, embora tivesse pedido que eu avisasse quando tivesse chegado a Peruíbe. Me levou à rodoviária e acabou por não poder ficar até a partida do ônibus. A descida da serra foi tranquila, e eu também estava tranquilo, me sentia estranho, mas tranquilo. Assim que cheguei a Peruíbe, peguei o ônibus urbano e desci no ponto costumeiro.
Agora sim, depois de meses de São Paulo e hospitais, a brisa marítima vinha me dizer oi. Deixei as últimas casas do bloco compacto da cidade. Os terrenos mais amplos iam aparecendo, a serra vem morrer aqui. A minha rua. Diminuí o passo. Senti a areia branca das ruas sob a sola do meu sapato. As ondas estavamno seu marulho ancestral. Eu deveria estar nervoso? Não, estou tranquilo, tranquilíssimo. Cheguei ao portão com naturalidade e, com as pernas ainda ágeis para um homem da minha idade, o transpus sem ruído. Cheguei agachado à porta da sala; vi que, como eu esperava, ela tinha sido arrombada — possivelmente com um maçarico, por causa das manchas de queimado — e o miolo da chave tinha sido trocado. De cócoras, me aproximei dos vidros da janela e vi que estava distraidamente batendo à máquina. Somente o barulho das batidas dos tipos no carro ecoavam dentro da sala. Era eu. Do lado de fora, tiro da sacola que trago a arma que comprei de um contrabandista durante um dos meus passeios de recuperação. Sem um tremor miro em mim, que estou sentado, batendo à máquina. Um, dois, três. Atiro. Um tiro certeiro, sequer percebi que atirei, sequer percebi que me atingi. Estou caído, morto no chão da sala, uma poça de sangue desenha um mapa desconhecido; guardo a arma e, enfiando a mão pelo postigo, giro a chave que está na porta, por dentro.
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Acho muito curioso as memórias em torno das leituras,mesmo não sendo um grande "letrado" tenho várias pra além das tiras ,gibis e álbuns de quadrinhos. Em especial me lembro de ter que ler Dom Casmurro e Iracema em uma semana para fazer prova na seguinte. Iracema era fininho mas insuportável,José de Alencar me faz "querer matar um índio" cada vez que o leio. Dom Casmurro fluiu maravilhosamente bem,foi quase um alívio depois da tortura lendo Iracema.