No Interior, a troca de emprego pode significar a troca de cidade. Acaba sendo comum o trabalho em municípios vizinhos ou mesmo a mudança para a capital; às vezes uma cidade média não comporta muitos profissionais da mesma área, e o crescimento profissional exige a ida para núcleos maiores. Foi num desses passos da vida laboral que Balduíno precisou mudar de cidade.
Funcionário de uma usina de cana, Balduíno (Baldo para os mais chegados) foi transferido para a matriz; deixou Bocaina, lugarejo de 10 mil habitantes que dorme sobre uma colina, por Piracicaba, urbe de 400 mil almas. A transferência veio com um aumento tímido no salário, que não cobriria o aumento no custo de vida na nova cidade; apenas o aluguel já lhe paparia o todo o adicional e mais uns trocados, pelo que Baldo conseguiu perceber nas buscas infrutíferas pelas imobiliárias de Piracicaba. Não achou nada minimamente bom a bom preço.
Depois de um dia todo de procura, já cansado de visitar casas ruinosas e quitinetes malsãs, Baldo viu, ao lado de um supermercado, uma banca de jornal; no alto da porta estava escrito “Imobiliária do João”, do mesmo jeito que poderia estar escrito “Boteco do Zé”, com o mesmo tipo de letra pintado à mão.
Dentro da mini-imobiliária, um balcão de madeira feito com ripas que sobraram de algum forro; no fundo, o cartaz desbotado, quase azul por completo, de um título de capitalização e várias fichas com os imóveis para venda ou aluguel. Por detrás do balcão, uma cabeça totalmente branca, as pontas do jornal que a cabeça lia e um fio de fumaça de cigarro, que subia vertical. Baldo aproximou-se da banca e começou a ver os anúncios de imóveis sem que a cabeça branca desse sinal de vida. De chofre, a cabeça se ergueu e mostrou a cara; Baldo, que tinha se distraído, assustou-se com o movimento brusco do homem.
— Tarde! Tá procurando algo?
— Oi, boa tarde, seu João. Procuro; estou procurando uma casa pra alugar, mas a procura não rendeu muito. Está tudo muito caro.
O homem da cabeça branca coçou a barba branca de uns três dias.
— Tá caro mesmo, mas o meu nome é Adamastor.
— …
— É que eu gosto de João, só por isso a imobiliária tem esse nome. Eu tenho algo aqui que pode te interessar…
Adamastor tirou de uma gaveta um bolo desordenado de fichas, do qual ia olhando ficha por ficha e descartando. Até que parou em uma bem encardida.
— Aqui, achei. É um sobrado perto da rua do Porto… tem umas estranhezas, mas o preço é um terço de imóveis parecidos na área. Você quer ir ver?
Apesar do aviso sobre estranhezas, Baldo concordou em ir ver a casa. Adamastor fechou a banca-imobiliária, e os dois entraram num Fusca sem cor predominante. Antes de dar a partida, o motorista ligou o rádio e enfiou uma fita cassete; começou a tocar a marcha “Colonel Bogey”. Adamastor sorriu para Baldo: faltavam-lhe três dentes na frente. Acendeu um cigarro, encaixando-o no vão de um dente faltante, engatou a primeira e o carro começou a andar.
— “A ponte do Rio Kwai”, firmaço bão da conta. Fui ver no cinema. — O tom da voz era o de quem havia já fumado muitos maços de cigarro paraguaio sem filtro.
Baldo nunca tinha visto “A ponte do rio Kwai”; embora tivesse ouvido em algum lugar a música. Por sorte, o sobrado não era longe da imobiliária, mas o tempo do trajeto foi suficiente para o cheiro do cigarro paraguaio do seu Adamastor empestear o interior do Fusca e impregnar a roupa.
De cara, a casa parecia estranha: do lado de fora, tinha janelas fora de alinhamento, como se tivessem sido jogadas. Os elementos estéticos indicavam que o imóvel era do final dos anos 30 ou do começo dos 40; o pé-direito do térreo tinha uns quatro metros e meio, e o do primeiro andar quase dois. Na parte de cima era possível tocar o teto com as mãos; no térreo, não era possível espanar as teias de aranha dos cantos sem uma escada de bombeiro. A divisão dos cômodos também era estranha: a laje do térreo cobria a garagem, e esta era dividida da cozinha com meia parede. Baldo nunca tinha visto nada parecido.
Adamastor explicou que o homem que havia mandado construir a casa era um médico; um dia, ele caiu no pronto-socorro e bateu a cabeça. Quando acordou, estava com o projeto pronto. Dizem que demorou uns anos até achar arquiteto que topasse assinar o projeto.
Alguns ambientes eram exageradamente grandes, outros muito pequenos. No quarto de hóspedes, por exemplo, mal cabia a cama e era preciso subir nela para acender a luz, pois o interruptor ficava na quina oposta à porta; o banheiro, em compensação, era redondo, sem cantos e do tamanho de um bar, com a banheira no meio, sobre um palco, como se fosse para tomar banho com plateia. Havia ainda uma ducha cujo cano descia do teto; a iluminação era provida por várias arandelas cuja distribuição na parede obedecia aos pontos que formam o cinco do dado. A escada que ligava os pavimentos era tipo Santos Dumont, em que dois degraus são pareados praticamente na mesma largura de um degrau convencional: economiza espaço, pois vence um desnível na metade da distância de uma escada normal, mas é algo que somente um abstêmio pode usar. A casa toda era um pesadelo para quem fosse adepto do feng shui; felizmente não era o caso de Baldo.
A sala, no térreo, era imensa e tinha as entradas ladeadas por colunas gregas. No meio, o único móvel que havia na casa: um sofá, provavelmente dos anos 50.
— E o sofá, seu Adamastor?
Adamastor olha para o sofá e devolve o olhar a Baldo.
— Está aí tem muito tempo; acho que desde sempre. Se você não quiser, pode mandar tirar…
Baldo pensou em protestar, que o móvel era responsabilidade do locador, mas o preço do aluguel matou a indignação na goela. Não era problema, nem que ele picasse o sofá no machado. A casa era toda estranha, mas o preço e a localização compensavam muito: era na região central de Piracicaba e estava perto da matriz da usina, o que permitia ir a pé ao trabalho. Baldo e Adamastor saíram da casa e fecharam o contrato de locação, todo batido a máquina. Nada de fiador ou depósito: a coisa foi no fio do bigode. O corretor insistiu em comemorar com uma dose de pinga no primeiro boteco que achou. No caminho para a rodoviária, onde ia deixar Baldo, e com meia garrafa de pinga na cabeça, Adamastor confessou que a casa estava para alugar havia mais de vinte anos, porque ninguém gostava dos formatos e da distribuição dos cômodos. Os proprietários, filhos do médico, pensaram em demoli-la, pois todos se recusaram a morar lá, mas não houve acordo. Todos os inventariantes precisavam assinar e um dos filhos do médico, também médico, era falecido e tinha três filhos, sendo que um estava incomunicável na Austrália, dizia-se que preso. Por isso a casa sobreviveu. De vez em quando ele, Adamastor, ia lá passar uma vassoura.
O corretor deixou Baldo na rodoviária e, ao ir embora, o Fusca despediu-se com três estampidos sequenciais do escapamento.
Na semana seguinte, Baldo voltou com o caminhão de mudança; as caixas foram se empilhando por todos os cantos estranhos da casa, menos no banheiro, pela ausência evidente de cantos. À noite, Baldo ficou sozinho com a mudança e, no jantar, abriu uma lata de sardinhas e as pôs num pão francês, que comeu com um guaraná. Depois de ficar um tempo mastigando e ouvindo rádio no meio das pilhas de caixas, lembrou que a cama veio desmontada e que o colchão, muito velho, tinha ficado em Bocaina para ser descartado. Às dez da noite e moído de cansaço, Baldo percebeu que não tinha onde dormir. Pensou em desmontar umas caixas e usá-las de colchão; ia ser uma noite dura, mas não de todo perdida. Indo atrás de umas caixas com esse pensamento, topou com o sofá.
Baldo levantou o plástico que o cobria, e o sofá, de veludo vermelho, parecia limpo e confortável; não pensou duas vezes: tirou travesseiro e lençol de uma caixa e deitou-se. Era confortável, mas, toda vez que Baldo adormecia, sentia um chacoalhão. Aquilo durou a noite toda: sempre que estava quase adormecendo, sentia um tranco. Na noite seguinte, ainda sem cama e morrendo de cansaço, de novo, mal adormecia e vinha o chacoalhão. A situação era insustentável. Depois de uma hora, Baldo deitou-se no chão; embora não sentisse mais os chacoalhões, uma sensação estranha atrapalhava o sono: acordou várias vezes durante a noite, sempre por conta de sonhos esquisitos, como jogar baralho com palhaços tristes que choravam sempre que perdiam a partida, marionetes que recitavam a Constituição cantando ou tatus que trabalhavam numa emissora de rádio AM.
Na manhã seguinte, Baldo foi atrás de um colchão; ainda de folga por conta da mudança (a usina lhe havia dado alguns dias), tirou a tarde para repor o sono atrasado. Acordou empapado de suor, não só por conta da tarde quente, mas também pelos sonhos doidos, que prosseguiam. Dessa vez, tinha sonhado com um canguru que tinha, no lugar da cabeça, um alto-falante, do qual saía a cantilena da pamonha. Levantou-se e foi para a sala, mas o sono lhe deu uma vertigem. Terminou sentado no sofá vermelho, ainda com o lençol e com o travesseiro da noite maldormida. Ali, no sofá e na semivigília, teve visões estranhíssimas: cáctus trocando tiros com uma gangue de vassouras dentro de um saloon e uma cantora de MPB que era um pinheiro usando sandálias de couro num show, enquanto cantava, meio bossa nova:
Eu comendo casquinha de siri,
No verão frio de Reiquiavique,
Fiquei num eterno piriri
sobre um bel vaso d’oiro. Que chique!
Baldo abriu os olhos cansado daquilo, mas, sempre que adormecia, a cachoeira de esquisitices oníricas voltava. Durante um cochilo breve, perto do anoitecer, sonhou com uma barata verde e amarela que tinha o rosto de Getúlio Vargas e ficava gritando “Trabalhadores do Brasil!” por trás dos móveis; era impossível matá-la. A cada chinelada inútil ela dizia “saio da vida para entrar na história” e gargalhava. Baldo conhecia o rosto de Vargas, mas não se lembrava de onde: não sabia exatamente de quem se tratava. Confundiu-o com o de um farmacêutico de Bocaina.
As noites foram se sucedendo assim. A casa já toda arrumada, e Baldo tendo dificuldades para retomar a rotina, pois as noites maldormidas lhe davam irritabilidade e olheiras. O moço não entendia os sonhos que lhe vitimavam. Embora não fosse muito crente em nada, teve a impressão de que os sonhos vinham de fora, ou seja, de que não eram frutos da sua mente. Além do mais, antes de mudar-se para Piracicaba, Baldo sonhava muito pouco, por conta do sono pesado. Lembrava-se de, no máximo, um sonho no bimestre; às vezes nem um inteiro: só fragmentos.
Uns dias depois, veio o encanador mexer na pia da cozinha; e como todo encanador, pintor e motorista de aplicativo, puxou conversa: falou das estranhezas da forma da casa, do clima, do futebol e também acabou falando da cara de cansado de Baldo, que resumiu a situação e acabou passando também umas impressões suas sobre os motivos possíveis daquele distúrbio onírico. O encanador, que se chamava Miltinho, parou o que estava fazendo e ouviu Baldo com toda atenção, com as mãos enfiadas nos bolsos do macacão de trabalho. Quando o relato acabou, Miltinho foi enfático:
— Isso é causado por lasquinhas de almas…
— Como? — perguntou Baldo, achando que estava sonhando com outro absurdo.
— Olha, é simples. Parece estranho, mas não é. A gente tem alma, todos. Cada um tem a sua alma. Ao contrário do que se pensa por aí, a alma não é um negócio que não tem peso ou matéria; ela é feita de uma matéria muito leve, chamada ectoplasma, que fica presa ao corpo. Por onde a gente passa vão ficando pedacinhos da alma, de ectoplasma. A alma é como se fosse um isopor que, de vez em quando, raspa numa parede só chapiscada: saem umas migalhas. A falta desses pedacinhos não prejudica o funcionamento da alma, mas eles podem se acumular no ambiente, principalmente em coisas que ficam muito em contato com as pessoas. Quando o senhor alugou a casa, tinha alguma coisa, objeto, que o senhor manteve aqui dentro?
— Então, tinha um sofá. O sofá vermelho que está na sala.
E foram lá ver o móvel. Miltinho circundou o sofá e prosseguiu.
— Não posso dizer nada agora, de cara; minha sensibilidade para essas coisas é baixa, ao contrário de gente que percebe algo quando entra num ambiente, como a minha mãe, que sente essas presenças. Eu estudei o assunto durante uns anos e desenvolvi um detector de ectoplasma livre, um plasmador, como eu chamo, que junta os pedaços, e um receptáculo, que é uma caixa magnética de armazenamento; com isso, eu costumo deixar as coisas limpas. Depois de arrumar a pia, eu vou em casa pegar o equipamento…
— Olha, Miltinho, agradeço a presteza, mas estou meio curto de grana, estou fazendo apenas o essencial…
O encanador parou e olhou para Baldo, como quem dá bronca em criança.
— Seu Balduíno, é meu passatempo; pode ficar tranquilo. Não tem custo. O meu dinheiro é pelos canos.
Miltinho terminou de arrumar o sifão da pia e foi para casa. No começo da noite ele voltou. Os dois descarregaram da Brasília velha vários aparelhos elétricos, cheios de potenciômetros e mostradores de ponteiro, além de malhas de cabos. Os equipamentos foram postos na sala. Para iniciar, Miltinho pediu a Baldo que separasse um objeto novo, um que já estivesse com ele há algum tempo e outro que estivesse há muito tempo. Baldo trouxe um saleiro comprado recentemente, um quadro que trouxe de Bocaina e um bibelô de louça em forma de pato que tinha sido da sua avó.
Miltinho pôs o saleiro no chão e passou sobre ele uma espécie de pá detectora ligada a um aparelho, que tinha visor de ponteiro com marcações de 0 a 10. O saleiro não dava o menor sinal de nada. Quando foi a vez do quadro, o aparelho começou a dar uns estalos irregulares e o ponteiro subiu até o 2. Quando foi a vez do bibelô de louça, o aparelho estalou mais alto e o ponteiro chegou ao 6.
— Olha só, seu Balduíno… um objeto mais velho que ficou em contato com gente, numa sala, por exemplo, tem um índice alto.
Miltinho colocou o pato de louça no meio da malha de cabos que ele chamava de plasmador e ligou as pontas numa bateria de carro. Demorou alguns minutos, mas algo começou a aparecer no oco que o pato de louça tinha, provavelmente para guardar chaves: parecia uma bolinha, mas era difícil focá-la, pois ela tinha a textura das auras da enxaqueca. Baldo e Miltinho se aproximaram para ver e a bolinha mostrou-se um camundongo.
— Caramba! Impressionante! Mas por que um rato, Miltinho?
— O senhor disse que o pato de louça era da sua vó, né? Então…
— Vovó morava no sítio e morria de medo de ratos…
— Exato… os pedacinhos de alma, como ficam despersonalizados, acabam usando linhas de memória, principalmente traços mais fortes. O medo de ratos deve ter moldado esses fragmentos.
Miltinho pegou o receptáculo, uma caixa metálica, e ligou os dois fios que saíam dela na malha. A bolinha desapareceu.
— O bibelô está limpo.
— E o rato, digo, a alma…? Digo, os fragmentos de alma, para onde foram?
— Estão no receptáculo.
— E o que acontece com eles lá?
— Viram energia, que é transferida para umas baterias recarregáveis que ficam atrás do receptáculo. Um pouquinho só: dá para ligar o tétris. Geralmente preciso fazer umas quatro coletas para encher as duas pilhas que ficam no carregador.
Miltinho tirou do bolso do macacão azul um minigame de tétris, desses que parecem um controle remoto, só que maior.
— Você vai usar a minha vó pra jogar tétris?
— Seu Balduíno, não é a sua avó: são fragmentos de alma que podem ser dela: são despersonalizados… é uma reutilização de energia, apenas. No fim, a gente gasta mais eletrizando o plasmador, mas, pelo menos, consegue tirar a forma que os fragmentos de alma têm…
Baldo ficou desconfortável em saber que pedacinhos da alma da dona Isaura, que fazia pudins tão bons, iam virar energia para um minigame chinês. Mas Miltinho recolheu o pato de louça do chão e o deu na mão de Baldo.
— Vamos ver o sofá.
Miltinho colocou a malha sobre o sofá vermelho; Baldo tinha a impressão que o sofá emitia uma energia “agressiva”: parecia que o tempo se deformava ao redor dele e que as falas e pensamentos perdiam o sentido imediato, se decompunham, e só se recompunham alguns segundos depois, num delay de compreensão, uma interferência no pensamento.
O encanador passou a pá detectora sobre o sofá; o medidor começou a dar uns estalos altos e quase ininterruptos. No mostrador, o ponteiro estava forçado para além da área marcada.
— Eu nunca vi nada acima de 9, e esse sofá está com mais de 10, com toda certeza.
O medidor parou de funcionar e soltou um fio de fumaça.
Miltinho parou por alguns instantes e ficou observando o fio de fumaça que saía da lateral do medidor e subia intacto uns dez centímetros para, de repente, perder a verticalidade e transformar-se em fumaça normal; o homem parecia realmente impressionado.
— Vamos ligar o plasmador.
Assim que Miltinho ligou os polos do plasmador na bateria, além do chiado das bobinas, foi possível notar que algo grande se formava sobre o sofá. Durante um longo minuto, uma silhueta humana, meio atarracada, começou a tomar forma.
— Será que é uma alma inteira? — perguntou Baldo.
— Não tem como, mas que tem coisa pra caramba nesse sofá, tem.
Mais uns instantes e formou-se uma figura humana: era o Quico, do “Chaves”, em preto e branco. E também houve um fenômeno inédito: uma musiquinha, bem baixinho, vinha daquela emanação. Baldo e Miltinho ignoravam, mas era “Sono un vagabondo”, versão italiana de “Quijote”, de Julio Iglesias.
Era uma forma humana, mas como a de um anão, vestido de marinheiro e com as bochechas inchadas.
— Muita gente se sentou nesse sofá, e ele ficou muito tempo na frente da tevê ligada — disse Miltinho —, mas eu nunca vi uma manifestação tão grande e completa. Geralmente são coisas como o rato que apareceu no pato de louça.
Miltinho tirou do bolso do macacão um caderno e fez algumas anotações. Saiu da casa e voltou com a bateria do carro. As pilhas do carregador preso ao receptáculo não seriam suficientes. Com aqueles fragmentos de alma, Miltinho deu uma recarga completa na bateria da Brasília, recolheu as tralhas e foi embora.
De fato, tirando a divisão esquisita da casa, a sensação esquisita que vinha da sala sumiu. Baldo voltou a dormir normalmente, inclusive no sofá; pensou em quantos nacos de alma ele próprio já não teria deixado em objetos por aí, principalmente nos da casa da mãe, em Bocaina. O trabalho na usina finalmente começou a fluir, a rotina encontrou uma estabilidade e o tempo foi passando.
Depois de algumas semanas, Baldo começou a reparar pequenas lascas de madeira caídas do sofá e rasgos que apareceram nos assentos, como se o móvel estivesse sofrendo um envelhecimento acelerado. Um dia, chegando do trabalho, viu que o sofá estava com os pés arrebentados e partido no meio pelo próprio peso. Em três meses, um sofá que tinha sessenta anos e parecia novo envelheceu os sessenta anos como se tivesse ficado ao relento.
Passados uns meses, a casa começou a encher-se de trincas, que iam aumentando. Baldo tentou falar com Adamastor, mas a imobiliária não existia mais, havia fechado e até o letreiro sobre a porta havia sido coberto com uma demão de cal. Baldo voltou para casa e foi dormir, pois já era noite, mas acordou no meio da madrugada com um estrondo horrível. Chegando à soleira do quarto, percebeu que metade da casa havia ruído; escutou outro barulho, de madeira partindo-se, e mal teve tempo de chegar ao quintal: o restante da casa veio ao chão. Do portão, conseguiu ver a nuvem de pó que se levantou dos escombros. Cães latiram e vizinhos saíram à rua: a casa estranha do médico era um amontoado de entulho. Sem a força que mantinha a construção antinatural de pé, ela simplesmente colapsou.
A imagem do "Quico" deu um toque especial.
Que demais. E ainda tem o sabor especial da história se passar na minha cidade, Piracicaba. Imaginei qual das casas velhas perto da Rua do Porto seria a casa estranha do médico. Não importa. Gostei demais.