Cinzeiro de Latão 5
Homem / Museu Britânico / Banheiros do Jânio / Penha / Sonho / Percival Junípero, o farol da democracia (conto)
Cinzeiro de Latão nº 5, 26 de janeiro de 2024
Homem
O homem é um animal singelo; a maioria, pelo menos. Os muito exigentes e cheios de vontade têm a alma feminina; não que sejam homossexuais ou afeminados, mas porque são como matronas romanas. Curzio Malaparte, em Kaputt, disse algo muito parecido de Hitler, definindo-o como a mãe da Alemanha, durante um jantar com o governador-geral da Polônia, Hans Frank. Isso valeu a Malaparte alguma dor de cabeça com o regime nazista.
Museu Britânico
“O Museu Britânico roubou os artefatos que lá estão expostos.” Quem choraminga por esse tipo de baboseira é incapaz de perceber a diferença entre um ônibus biarticulado de sete eixos e o próprio traseiro. Três quartos dos artefatos do acervo, se lá não estivessem, não existiriam, porque os próprios povos que os produziram teriam já dado fim nos objetos. O que mais há são povos irresponsáveis, o que bem se nota quando são chamados às urnas. Essa choradeira inútil é por conta do politicamente correto.
Pena que os britânicos não conseguiram roubar mais; muita coisa que acabou sumindo na barbárie estaria lá, devidamente conservada em Londres.
Banheiros do Jânio
Aquando de sua segunda passagem pela Prefeitura da Capital (que a Wikipédia me informa ter sido de 1º de janeiro de 1986 a 1º de janeiro de 1989), Jânio Quadros mandou erguer alguns, não sei quantos, banheiros públicos. Eu era muito criança em 1987 e 1988, mas me lembro que a Administração Jânio foi a responsável por sepultar o córrego que há na rua de baixo da casa da minha mãe. Além dessa obra, entre as gestas janistas estão a recriação a Guarda Civil (embora o ente anterior com esse nome fosse vinculado ao Estado), os ônibus de dois andares vermelhos, como os de Londres e que só circulavam na região de Santo Amaro, e a criação da bandeira do Município.
Mas quero tratar em específico dos banheiros. Não consegui achar nada na internet, que parece não ter memória para minudências como banheiros públicos. Durante seu reinado, porém, Jânio mandou erigir alguns. A imagem que existe na minha cabeça, de criança de seis ou sete anos, é ter visto um de pé, já meio derruído e sem telhado, em um passeio com o meu pai, nos fundões da Cohab I, quando roubávamos grama de áreas públicas para colocar no jardim de casa. O banheiro em si era uma casa quadrada, de blocos aparentes pintados, acho que de amarelo-claro, com alguns respiros, feitos com um bloco especial, em forma de cunha, já perto do beiral. Esses sanitários foram construídos e, imagino, concebidos para serem tutelados por alguém, seja funcionário do Município ou vizinhos do equipamento (é engraçado chamar banheiro de equipamento, mas ele entra no rol de equipamento público). Como tudo o que é público, foi rapidamente abandonado, tornando-se o de ninguém e abrigo informal para moradores de rua. Daí à depredação e à destruição é simples como respirar.
Não sei quantos desses banheiros existiram ou mesmo se algum, ainda que desvirtuado de sua função primeva de mijadouro público, siga de pé passados três decênios e um lustro. Lembro-me principalmente do meu pai falando desse banheiro, o “banheiro do Jânio”, porque era referência de localização, e também pelas críticas de malversação de fundos públicos em obras desnecessárias.
Pesquisei por um bom tempo a respeito, mas não descobri muito mais. Falei com o pai, que me retificou a localização do banheiro: era onde está hoje a 66ª Delegacia de Polícia. Se o banheiro foi construído na administração Jânio Quadros (começam a me aparecer umas dúvidas), ele foi destruído logo depois. A construção da delegacia estava acontecendo entre 1987 e 1988, com certeza, pois eu conseguia ver os guindastes de cima do trepa-trepa da escola. Será que o banheiro não teria sido feito na administração Mário Covas? Pois, se a administração Jânio começou em janeiro de 1986, teria o banheiro durado parcos dois anos?
Jamais saberemos.
Penha
A minha relação com São Paulo é um pouquinho de amor, algum rancor e bastante indiferença; mas, por ter ali nascido e vivido até quase os trinta anos, tenho algo que poderia definir como “geografia sentimental” da cidade.
Penha. O bairro não era longe de casa, mas estive lá apenas umas três ou quatro vezes na vida. O problema não era a distância, mas o caminho, tortuoso. Havia (e ainda há) um ônibus que passava no meu bairro e ia até a Penha; o ponto negativo é que ele, antes de chegar lá, passava por Taubaté e Pequim; ou seja, dava uma volta infernal por outros bairros que conheci muito pouco: Vila Eutália, Vila Talarico e outras aglomerações urbanas da bacia do Guaiaúna. Esse perto que é longe fez da Penha, para mim, uma região mística e longínqua; a Penha é o meu Uqbar. Havia shopping na Penha; mas havia o Aricanduva e o Tatuapé, muito mais acessíveis. Havia comércio na Penha, mas havia também o da Celso Garcia, o do Brás e o do Centro. Logo, a Penha não era uma opção viável, uma península entre a linha tronco e a variante da Central, hoje linhas 11 e 12 da CPTM, nessa ordem.
Fui à Penha numa das minhas fugas relativamente comuns entre os doze e os quinze anos, em que, aproveitando da pouca vigilância do meu pai, me metia num ônibus e ia conhecer os lugares, fazer turismo. Algo temerário na época e impensável hoje em dia. Lembro-me de pouca coisa, mais de nomes de praças (Micaela Vieira, Oito de Setembro) do que de fato vi. Lembro-me de um prédio assobradado, perto ou em uma dessas praças, em estado ruinoso; acho que era o cartório eleitoral. Estive na Igreja, do século XVI ou XVII, mas não me lembro de praticamente nada.
Em 1999 estive lá para comprar papel manteiga, para fazer um projeto da escola. Em 2001, no casamento de um colega do meu primeiro trabalho, estive na Basílica de Nossa Senhora da Penha, que se vê do elevado Aricanduva, ou, para os íntimos, Engenheiro Alberto Badra. Em 2004 fui à casa de um colega de faculdade, que morava na parte mais baixa, tratar de algum negócio da China. Depois disso, nunca mais pisei na Penha.
A mãe do meu pai morava na região, mas para o lado do Cangaíba. Para ir à casa dela, precisávamos atravessar a Radial e as linhas do trem e do metrô pelo viaduto Dona Matilde, o que nos fazia subir a Padres Olivetanos.
Na estação Penha do Metrô, por outro lado, passei quase diariamente durante dez anos e sempre achei estranhíssimo que ela ostentasse esse nome. A Penha é no alto do morro (daí o topônimo), e a estação está na encosta oposta, na colina da Vila Aricanduva. Segundo os planos originais do Metrô, a parada deveria chamar-se Aricanduva, o que tampouco corresponderia à realidade, porque a referência primeira é o rio, umas quadras mais a oeste, porém mais coerente pelo nome do bairro; ali, acho, é a Vila Aricanduva. A Companhia do Metrô, dizem, faz uns estudos para nomear as estações, embora eu não tenha certeza da precisão desses especificamente sobre a estação Penha. Havia a estação de trem (da RFFSA/Central do Brasil, depois da CBTU) quase do lado do metrô, que atendia pelo nome de Carlos de Campos (o sopé do morro, imediatamente ao norte da estação, é a Vila Carlos de Campos); antes, a estação se chamava Guaiaúna, por conta do córrego e, depois, o nome deve ter escorregado para a rua que ainda o carrega. Mesmo com a estação desativada, durante muito tempo a cobertura de concreto e as plataformas sobreviveram; na viga horizontal do abrigo estava pintado o nome da estação em preto, sobre um retângulo branco contornado de preto, além da indicação das próximas estações sentido Rio (Vila Matilde) e sentido São Paulo (Engenheiro Sebastião Gualberto), a quilometragem da estação (acho que contando desde o Rio) e a altitude em relação ao nível do mar, dado pelo qual tenho um apreço todo especial. Parece que aquela indicação de altura nos põe no mundo, não sei. A estação do metrô poderia muito bem ser Carlos de Campos ou Guaiaúna, nomes muito mais coerentes.
A estação, na Revolução de 1924, abrigou temporariamente o governador Carlos de Campos e seu gabinete, que precisaram fugir do Centro. Para eternizar uma fuga inglória, a estação acabou sendo rebatizada, em algum momento posterior, com o nome do homem que escapuliu do General Isidoro Dias. O prédio horrível da estação, feito nos anos 70, foi demolido não tem muito, embora o trem não parasse ali desde 2000. A estrutura original (muito mais bonita) que abrigou o governador e sua comitiva foi derrubada nos anos 60 ou início dos 70.
Sonho
O sonho desta madrugada foi algo notável, tendo em vista que não costumo me lembrar de muita coisa ou me lembro apenas de fragmentos. Desta vez o filme foi quase completo.
Em um primeiro momento, eu era caixa no Pão de Açúcar e tentava passar um cortador de unha para uma velha; havia mais gente na fila, mas eu não conseguia fazer o sistema do caixa funcionar direito (uma aflição da vida real: nada funciona bem na minha mão e, volta e meia, me vejo encrencado); perdi uns cinquenta minutos tentando. Para resolver a pendência, precisei sair do mercado acompanhado da supervisora, que me desancava de quando em quando. Eu lhe dizia que ia deixar a função, pois, afinal, eu tinha outro emprego (o do mundo desperto, vejam só). Ela concordou no meio da raiva toda, mas mandou que eu terminasse o que tinha começado, ou seja, de atender a fila. Voltei ao mercado, e a mulher do cortador continuava lá esperando. A fila começou a andar e, num determinado momento, passou o meu pai e disse:
— Olha, fica esperto que tentaram entrar em casa pela janela do banheiro — o que na vida real é impossível, tanto pelo tamanho da janela como pela altura que ela está do chão; fora o fato de haver opções mais viáveis.
O meu pai foi embora e, por trás da fila, apareceu um rapaz (que, dentro do esquema onírico, eu conhecia) me perguntando:
— Ô, foi você que fez uma tirinha contra o Islã no seu blogue?
Por conta do movimento da fila não consegui responder o moço e nem saber por que ele tinha perguntado aquilo.
Terminei o atendimento do caixa e descubro que estou descalço: meus tênis estão molhados de chuva. Fui obrigado a ir embora sentado na parte de trás de uma carroça que carregava esterco, com os tênis no colo.
Chegando em casa, um grupo de umas dez pessoas me esperava na sala, todas vestidas como mujahedins, mas eram brasileiros com cara de italiano. Havia inclusive uma velha e umas crianças. Eles falavam e gesticulavam; tinham entrado pela janela do banheiro. O mais velho, que parecia o Olavo de Carvalho, tomou a dianteira e me apontou o dedo:
— Você ofendeu o Islã!
Não recordo exatamente o que eu disse, mas foi na linha do “deixa disso, vamos conversar”, o que funcionou, porque eram muçulmanos radicais, mas eram conterrâneos, desses que gostam de churrasco e fazem pudim. Sentamo-nos todos no sofá e o Olavo pôs um DVD para me mostrar o quanto os muçulmanos sofriam.
Nisso, o meu pai aparece na sala e pergunta o que estava acontecendo, ao que respondi:
— Pode deixar; é comigo. Fique tranquilo.
Respondida a pergunta, ele se vai. Havia algo no forno.
De repente, a filmagem do DVD mostrava a demolição da tumba de um mártir tchetcheno; pela portinhola frontal do sepulcro, que começava a ceder, um cachorro caramelo entrou para a área onde fica o corpo. O sonho terminou aí. Acho que não me ferrei, porque os ítalo-muçulmanos pareciam mais querer explicações e pudim que o meu couro.
Percival Junípero, farol da democracia
Ao doutor Ulisses Tonganini
O doutor Percival Junípero foi um homem exemplar. Democrata de primeira hora, teve o seu mandato de vereador em Monte da Manguara, interior de Minas, cassado em 1968. Estabelecendo-se em Paris, foi uma das “pequenas vozes” contra o regime militar, ou seja, os políticos secundários vítimas acidentais dos vários atos institucionais. Na época, chegou-se a dizer que a cassação de Junípero teria sido um erro cartorial dos serviços de segurança, e que, na verdade, se tratava de outro Percival. Pode ser também que tenha sido obra do juiz da comarca, já que o doutor Junípero tinha o péssimo hábito de arrotar virtudes sem possuí-las, o que irritava o magistrado.
De qualquer modo, o vereador cassado retornou ao país com a Anistia e por conta de uma ordem de extradição emitida pela República Francesa. Apoiou as Diretas Já e conseguiu eleger-se deputado constituinte. Acabou morrendo em 1987, engasgado com um pedaço de banana enquanto se esforçava para entender o texto de um artigo da Constituição em redação, sem ter visto o pleito pelo qual tanto lutou e com o qual tanto sonhou. Percival Junípero, entrecortado pela tosse asfixiante, ainda conseguiu dizer suas últimas palavras: “Viva a democracia!” e “Maldito Tancredo!”, já que disputava com o doutor Tancredo, seu conterrâneo, a indicação à candidatura na última eleição indireta.
Apesar das acusações de enriquecimento ilícito, nunca provadas, mas berradas e publicadas nos jornais pelos seus detratores, a reputação do doutor Junípero era celebrada pelo baixo clero da Câmara: íntegro, probo e pulcro, se bem que o último adjetivo, usado pelo colega Serapião Kleissmann, de Santa Catarina, no discurso fúnebre, não cabia bem ao defunto. O deputado Kleissmann desconhecia o significado exato do termo, e Junípero era feio como um acidente de trem, com o rosto todo marcado pela varíola que o tinha acometido na infância e o físico de palito de fósforo queimado; morto e no meio das flores, lembrava um quindim mofado no balcão de uma padaria suja.
De qualquer maneira, Junípero deixou em testamento a tarefa de lhe escreverem uma biografia. Não que ele não tenha tentado uma autobiografia, mas seu rascunho ficou tão ruim que causou a morte de dois revisores e cegou de um olho o editor. A cláusula testamentária era clara: “No trigésimo aniversário de minha morte, quero que seja montada uma comissão com duzentas pessoas, representantes das classes laboriosas, para elaborarem minha biografia; como tenho a certeza inalienável de que meus esforços pela democracia neste país não serão esquecidos, os membros da comissão não precisarão, e nem deverão, consultar livro, enciclopédia ou arquivo para a elaboração do texto. Uma biografia feita de maneira democrática, pelo povo e para o povo. Exegi monumentum aere perennius”.
Em novembro de 2017 a comissão estava pronta. Duzentas pessoas: diretores de escola, professores, alunos da rede pública, universitários, comerciantes, donas de casa, três prostitutas, cinco ex-prostitutas, camelôs, funcionários públicos genéricos, um fabricante de sabão, uma cartomante, um ex-bicheiro e um dono de pet shop. Todos foram escolhidos por uma equipe do Instituto Percival Junípero, mantido pelo filho do finado parlamentar e eterno candidato à Câmara, Junípero Júnior, o JJ. O instituto ocupa uma sala comercial no bairro paulistano do Pari, sobreloja de uma oficina de costura, e a equipe para formar a comissão resumia-se a JJ e a seu faz-tudo, Romeuzão, ex-leão de chácara; todas as duzentas indicações tinham alguma ligação com este: parentes, amigos, ex-colegas, amigos de amigos, colegas de colegas, parente de amigos de colegas. É preciso reconhecer a rapidez com que Romeuzão reuniu aquela aglomeração tão diversa: dez dias apenas; vendo todos sentados diante de si, não pôde conter uma furtiva lágrima. Alguns foram obrigados a ir por conta de dívidas antigas; outros toparam ir pelo lanche; alguns ainda tiveram a promessa de embolsar cinquenta reais.
A comissão foi instalada em um galpão alugado no Brás. Romeuzão também alugou as cadeiras de plástico e as organizou; com materiais que estavam espalhados pelo galpão, improvisou um palco e trouxe o púlpito que ficava juntando poeira na sede do instituto. Na data marcada, estava tudo pronto. JJ chamou um fotógrafo e pediu para um sobrinho, que escrevia razoavelmente bem, de tomar nota e plasmar a biografia do doutor Percival Junípero, arauto da democracia.
Eram nove horas da manhã e a comissão bicentúria confraternizava com café e pão com manteiga. JJ entrou, com terno e gravata algo largos, puídos e de corte antigo, subiu ao palco e postou-se atrás do púlpito. Romeuzão já tinha providenciado o microfone e a caixa de som das épocas de campanha.
— Estimados amigos…
As pessoas foram desmanchando as rodas de conversa e tomando seus lugares nas cadeiras de plástico.
— Estimados amigos… irmãos. É com os olhos cheios d’água que recebo vocês: os duzentos escolhidos.
Faltaram alguns, por imprevistos e omissões, mas era fato que o lugar estava cheio. Embora Romeuzão tivesse explicado e passado para outros a tarefa de explicar os objetivos daquele ajuntamento, ninguém sabia exatamente o que ia acontecer.
JJ continuou falando, aparentemente emocionado, e explicou à assembleia por que ela havia sido convocada. Vários olhares se entrecruzaram ao ouvir o nome do doutor Percival Junípero e seu desejo esquisito. No meio daquela nuvem de interrogação, havia apenas uma certeza: ninguém nunca tinha ouvido falar do doutor Junípero.
Terminado o discurso, JJ foi embora dando boa sorte àqueles congressistas acidentais. Ele precisava recolher verbas para a sua próxima campanha à Câmara, que já se aproximava.
— Será que era médico?
— Talvez advogado; é tudo doutor.
Ignoravam que Junípero mal tinha terminado o fundamental.
— Eu acho que era médico. O médico dos pobres. — Disse uma estudante do ensino médio, meio dentuça e visivelmente emocionada. — Certeza que ele era bonito e usava terno branco e chapéu.
As regras eram claras: aquela gente toda ia ficar ali para escrever a biografia do homem, sem o uso de nenhuma fonte externa. Os celulares foram todos desligados; várias rodas se formaram. Não havia ar-condicionado; logo o calor e o cheiro de gente tomaram o lugar. O sobrinho de JJ, Rodolfo, encarregado de fazer a compilação, de vez em quando girava pelos círculos de cadeiras, como o professor entediado que tivesse dado aos alunos algum trabalho em grupo. Mesmo Rodolfo ignorava quem tinha sido exatamente o seu tio-avô; sabia-lhe o nome, o que já era bastante.
— Era rico?
— Pra ser esquisito a ponto de pedir um negócio desses, com certeza. Rico adora uma esquisitice. — Disse uma das ex-prostitutas, que agora administrava um boteco na Brasilândia.
Como as opiniões sobre a vida do doutor Junípero começaram a divergir muito, inclusive com um começo de tumulto, decidiu-se por um sistema de votação em chaves, como os campeonatos de futebol, para decidir como contar a história.
Chegou o almoço: salgados sobrados de uma festa infantil e um panelão de cachorro-quente; as opiniões agora começavam a ficar luzidias como aqueles lábios que devoravam coxinhas murchas e frias. Após o almoço, a guerra verbal entre as facções formadas voltou à carga; o ambiente parecia o pregão da bolsa, embora alguns cochilassem nas cadeiras de plástico. Romeuzão assistia a tudo sentado ao lado da porta, com o ar satisfeito de quem está cumprindo com excelência a tarefa dada.
Os debates se arrastaram pela tarde; a cada momento, um representante de cada grupo vinha ao microfone expor as suas concepções sobre a vida do doutor Junípero e era apupado ou ovacionado conforme os humores da plateia.
As teses e ideias iam sendo filtradas pelos debates e pelo sistema de chaves. Uma linha principal para seguir começava a delinear-se naquela confusão. Rodolfo anotava tudo no seu caderninho de capa preta, grave como quem empreendesse uma tarefa titânica. De fato, era uma tarefa titânica pensar e escrever no meio daquela barafunda; o mérito era do rapaz. Páginas e páginas foram se enchendo com uma caligrafia caprichada, que impressionava os circunstantes. O lanche da tarde foi servido lá pelas quatro e meia: restos do almoço e pipoca, além de café aguado.
Debates e anotações continuaram até quase às sete, quando finalmente Rodolfo pegou o microfone:
— Senhoras, senhores, damas e cavalheiros… — as vozes da assistência foram cedendo — O doutor Junípero nos deixou um serviço, e nós o fizemos com amor, aplicação e sem medo. A biografia certamente não é perfeita, mas foi construída pela vontade do povo, democraticamente. Eu, em nome do meu tio, filho do finado, só tenho a agradecer a vocês por terem aceitado a missão e pelo esforço de cumprir uma vontade depois de trinta anos de sua formulação. Meus caros, muitíssimo obrigado.
Seguiu-se uma salva de palmas estrondosa, de quase um minuto, intercalada com “É isso aí!”, “Muito bem!”, “Viva o doutor Junípero!” e “Vai, Corinthians!”. Rapidamente a sala se esvaziou, ficando apenas Romeuzão e Rodolfo, que, cansado, disse:
— Agora é editar tudo isso.
Foram meses de trabalho seguindo a mesma lógica: nenhuma fonte externa poderia ser consultada. Rodolfo valia-se apenas de gramáticas e dicionários. O editor precisou também fazer de autor e acabou enfiando umas histórias e passagens. Ao final, o livro estava pronto: a biografia do doutor Junípero tinha 153 páginas em tipo Garamond, 12 pontos, margens 3, 2, 3, 2, espaçamento de 1,5, sem espaço após os parágrafos. A Tipografia da Câmara diagramou o livro e o imprimiu. Agora os exemplares de capa verde e amarela de “Percival Junípero, o farol da democracia” pegam poeira na livraria da Câmara e na casa de alguns agraciados com exemplares de cortesia. Na sede do Instituto Percival Junípero, cem exemplares pegam poeira com o púlpito.
A primeira biografia democrática do mundo é um portento literário; abaixo, alguns trechos escolhidos:
O doutor Percival Junípero foi político, médico especializado em pobres, advogado, fazendeiro, comunista, implementador da reforma agrária no Brasil e mecânico especializado em Fusca. Foi ainda professor de taquigrafia, um dos introdutores do espiritismo no Brasil, prestidigitador exemplar e carrapato do úbere do Estado. Fez Mobral e ganhou um honoris causa de Harvard, em 1921.
Era conhecido por seu gosto peculiar quando frequentava prostíbulos, tendo preferência por orientais. Teve pelo menos dez tipos de doenças venéreas, sendo duas desconhecidas pela ciência quando de sua morte; uma delas tornou-se a doença ou mal de Junípero.
Nasceu em 1936 ou em 1942 e teve três filhos e meio. Desenvolveu o linotipo elétrico e a tinta invisível para holerites, muito usada na sonegação de impostos até hoje. Foi consultor da Avon, tendo ganhado o primeiro prêmio de vendas em 1957, galardão que recebeu do então presidente da República, Getúlio Vargas.
Como pioneiro da ufologia brasileira, fez o primeiro avistamento de disco voador em território nacional, logo após a chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil. Dedicou-se à numismática, à avicultura e também ao pugilismo, além de ser punguista nas horas vagas.
Seu maior feito foi ter esculpido o Cristo Redentor com um quebra-gelo e em duas semanas. A estátua até hoje nos lembra da importância de Cristo e sua doutrina no nosso país.
Tivesse César tido a honra de contar com o doutor Junípero como conselheiro, não teria ultrapassado o Rubicão e respeitado as leis romanas e o Senado. Mas Junípero, naquele então, estava em Palos, ajudando Colombo a recrutar gente para a viagem à Lua.
Junípero morreu atingido por um raio enquanto fumava e tocava lira em cima do telhado. Foi enterrado em dois caixões: um em Santos, no Panteão dos Andradas, família à qual pertencia pelo lado materno, e outro no Cemitério da Vila Formosa, na Zona Leste da capital paulista, para estar sempre junto àqueles que sempre defendeu.
Pode ser absolutamente falsa e delirante a biografia do doutor Percival Junípero, mas é democrática.
Não sabia desses banheiros do Jânio nos bairros. Achei que você se referia ao temível banheiro do Anhangabaú, em frente ao Correio central. Quando office-boy, eu temia adentrar ali e ser sodomizado ou contrair alguma bactéria mortal. Para isso sempre me vali do banheiro do McDonald’s na Barão de Itapetininga.