Cinzeiro de Latão 19
Ônibus, tempo e civilização / Sonhos 3, 17 e 25 / Paulo Francis: Cabeça de papel / Bitucas / Galardão / Brasília
Cinzeiro 19, 3 de maio de 2024.
Ônibus, tempo e civilização
Pelo que posso observar, as pessoas são possuídas pela pressa. O termo é esse: estão possessas por um espírito maligno. Sempre atrasadas, não têm um segundo a perder, time is money. Não há mais o tempo da contemplação, tão necessário para pôr a mente em ordem. Eu dou o meu jeito: farsescamente aperto tarefas para que me sobre tempo, que gasto com leitura, com escrita, ou simplesmente fazendo nada. O nada é uma demanda existencial minha. Ver gente atarantada é algo que me cansa a alma; ética protestante do trabalho é um negócio que me enche de brotoejas. Nesse ponto sou ibérico, quiçá romano. Não nego o valor intrínseco do trabalho, mas, se for possível escapar, escaparei.
Uma atividade que exige tempo é o deslocamento. Talvez você que me esteja lendo no futuro e viva no tempo do teleporte íntegro (neste momento ele até existe, mas para átomos e com perda de 25% da matéria transportada) não consiga entender o conceito, mas, para se deslocar de um ponto a outro no universo é preciso tempo, mesmo para distâncias curtas.
O automóvel nos viciou em deslocamentos rápidos; desde que não haja trânsito. Como motorista tardio (tirei carteira depois dos trinta), digo que a comodidade do carro é viciante; quem começa a dirigir com dezoito não tem essa impressão, pois já entrou na vida adulta com a noção de tempo deturpada. Quem dirige desde muito cedo nunca sai da pressa típica da adolescência.
De onde vivo até São Paulo são três horas e um quatro de carro, se o trajeto for feito sem paradas; de ônibus, quatro horas e meia, com uma parada de meia hora em um posto de beira de estrada, mas que se parece com um shopping center e em que se come a preços de aeroporto. Uma hora e quinze minutos a mais. Mas dirigir é um inferno: prestar atenção no caminho e, principalmente, nos outros motoristas, ficar atento a radares, a pedágios. Em suma, é maçante.
Recentemente fui a São Paulo de ônibus, coisa que não fazia havia oito anos. O reencontro com o ônibus de viagem foi providencial. Todas as preocupações com o caminho, deleguei-as ao motorista do ônibus; nada como deixar a responsabilidade nas mãos do profissional certo. Se ele vai seguir as normas de trânsito ou abalroar outros carros, não é exatamente problema com que eu precise me preocupar: já houve a terceirização com o pagamento da passagem. A manhã de sábado estava agradável e, com as cortinas fechadas e sem ninguém para dividir a poltrona comigo (havia pouca gente no ônibus), li plácida e detidamente. Quando percebi, o ônibus estava entrando no posto para a parada intermediária, duas horas e tanto depois de ter partido; eu não vi nada e me entreti totalmente com a leitura. Desci, me espreguicei e, com calma (o posto estava relativamente vazio: havia passado pouco das 9 da manhã), tomei um café e bebi uma água com gás. Tranquilamente, sentado e observando tudo com o gesto de quem sabe ter tempo. Paguei, saí, fumei um cigarro e voltei para o ônibus. Quando percebi, estava em Cajamar, já fora do mar de cana do interior profundo, a uns 25 minutos da Marginal Tietê.
É claro que, às vezes, preciso fazer algo com pressa, o que detesto, mas uma viagem desse tipo, num sossego completo, não tem preço. Mesmo quando cheguei ao Tietê, às 11h30, o ambiente parecia amortecido, havia pouca gente circulando. Foi uma viagem providencial. Me senti civilizado como poucas vezes na vida.
Sonhos 3, 17 e 25
Eu estava com a minha família e alguns amigos fazendo um churrasco no prédio da biblioteca pública do meu bairro. Apareceu uma amiga e disse que estava grávida (puxa) de trigêmeos (caramba!) e que eram meus (intercessão divina). Tive de deixar o churrasco, pois precisava fazer uma pesquisa sobre o preço dos botijões de gás; um dos depósitos que visitei era numa rua da Vila Carrão que frequentei na minha adolescência. O depósito era numa casa cujo terreno era abaixo do nível da rua. Na grade, uma caneta amarrada (como nas lotéricas) para que as pessoas pudessem tomar nota dos preços. De dentro do depósito veio um cachorro horroroso, parecido com uma hiena e se pôs a latir furibundo por detrás da grade. Tomei um susto. Havia duas pessoas comigo, funcionários de algum tipo de agência federal de energia nuclear e que, a certa altura, me disseram para largar aquilo que íamos almoçar no restaurante da repartição. Qual não foi o meu estranhamento quando descobri que o restaurante era um anexo sobre o teto da estação Artur Alvim do metrô. Do lado da bilheteria havia uma escada e, na ponta da escada, uma funcionária controlava a entrada das pessoas; era necessária a apresentação do crachá. Os meus acompanhantes tinham esses crachás pendurados no pescoço, que pareciam mais cartões de biblioteca velhos de cartolina verde.
Eu estava um pouco aflito, pois sempre tive receio de infringir regras e, pior, ser pego na infração. Não deu outra: a mulher da escada me parou e tive de descer a rampa da estação, desconsolado e ofendido.
Resolvi procurar outro lugar para comer e a caminhada me levou a um prado que eu sabia que era para os lados de Mogi das Cruzes, mas não sabia exatamente onde. Saio da trilha e me embrenho no mato; encontro uma construção de madeira, como banheiro de acampamento de filme, só que maior. Observo que está trancada, porém, como o cadeado está corroído, ele se solta de pôr a mão. A curiosidade me impele a abrir a porta: há uma escada de pedra, devidamente iluminada. Desço, e a umidade do ar se torna patente. A escada termina e transforma-se num longo corredor, o qual percorro não sem certo receio. O corredor termina num grande domo subterrâneo, onde há máquinas e quatro gigantescos tubos transparentes, do tamanho do túnel do metrô, que cortam o espaço, surgindo da rocha e enterrando-se novamente nela. Alguém percebe a minha presença: são operários, mas têm a pele amarela, de um amarelo-gema. Em vez de me enxotar, me recebem de maneira cortês e explicam que fazia muito que ninguém entrava ali. Uma multidão daqueles homens amarelos controlava máquinas ligadas aos tubos imensos. Um deles me explicou a função daquela equipe: dava movimento ao planeta; a rotação da Terra não era natural, mas artificial, e eles eram os responsáveis por manter aquele movimento. Por dentro dos tubos, que descobri estarem cheios de líquido (mas não era água), passavam animais imensos com aspecto misto entre sapo e peixe, que pareciam saídos de um bestiário medieval. Eram eles que, rodando em alta velocidade por aquele líquido denso dentro dos tubos, que circundavam todo o planeta, faziam com que a Terra girasse, criando o dia e a noite.
Enquanto o meu guia me explicava como os animais eram alimentados em imensas câmaras bariátricas, soou um alarme com luzes vermelhas oscilantes: um dos peixes-sapo havia entalado no tubo e começou a prejudicar a rotação. Se o tubo não fosse desobstruído, o dia ficaria maior. Só havia um jeito de desobstruir o túnel e era com uma espécie de inseto, mas não qualquer inseto. Assustado, me ofereci como voluntário. Nem era tão longe, era preciso ir buscá-los na Basílica de São Bento. Era necessário ir lá e procurar o monge mais barbudo.
Por sorte, o complexo dispunha de um trem privativo subterrâneo que parava em estações iguais às estações de metrô da linha 1, mas os letreiros estavam em russo.
Chegando na São Bento, fui atrás do monge mais barbudo, que era não um beneditino, mas um pope ortodoxo, com um crucifixo imenso pendurado no pescoço por uma corrente dourada de aros grossos. Sem dizer nada, ele fez sinal para que eu o acompanhasse e me levou a uma cripta sob o piso da igreja. Ali havia um cilindro de pedra, que vinha do teto.
— O que é isso? — perguntei.
— É o sarcófago do Fernão Dias... não viu a tampa de bronze no piso, lá em cima?
Curioso que aquela cripta era a da Catedral da Sé, mas estava sob o piso da Basílica de São Bento. No fundo da cripta, num buraco retangular cortado no chão de pedra, reluzia um ataúde de madeira todo entalhado; na verdade, brilhava tenuamente no escuro, como aqueles brinquedos fosforescentes.
— Vamos, me ajude a remover a tampa — disse o pope.
Empurramos e havia ali um cadáver conservado que brilhava, a luz que do corpo emanava banhou toda a cripta, que agora parecia a praça maior de uma cidade espanhola.
O cadáver estava todo ajaezado como se fosse um bispo da Idade Média, cheio de paramentos, com um cetro recurvo e uma mitra. Para espanto meu (e não do pope), o cadáver abriu os olhos e se levantou, como se tivesse acabado de acordar; me estendeu uma pequena bolsa de veludo e deitou-se de novo, a luz começou lentamente a ficar mais fraca. O pope me sorriu fez sinal para que eu abrisse a bolsa. Dentro? Baratas, umas cinco, mas não comuns: o exoesqueleto era de marfim (puro marfim, segundo o pope) e as patas eram de ouro (ouro puro qual esse não há!) que raspavam os cascos umas das outras. O sonho termina aqui.
(texto de 2010, editado)
Paulo Francis: Cabeça de papel
Pedi ajuda ao Orlando sobre os livros do Paulo Francis, e ele me recomendou o romance Cabeça de papel. Fico com a impressão que sempre me assombra nesses casos: por que não o li antes? Finalmente se abrem as janelas do casebre decrépito da literatura nacional para que o bafio da Geração de 30 e da Geração de 45 dê espaço a um alento novo. Chega de retirantes, de vidas miseráveis, de papagaios que terminam cozidos. Isso tem o seu espaço na literatura brasileira; aliás, mais que garantido nos últimos oitenta anos. Não se fez outra coisa além de romance denuncista: Guimarães Rosa, Jorge Amado, Graciliano Ramos. Precisa existir? Não vou dizer que não; o problema é existir só a denúncia e que apenas ela seja digna de representar a literatura nacional. Haja saco!
A descoberta dos contos de Murilo Rubião já tinha ventilado a minha visão das letras nacionais; o mesmo com Cyro dos Anjos e o seu O Amanuense Belmiro. Os romances do Mainardi também me ajudaram nesse emergir do pântano; é realmente uma pena que ele prefira espicaçar certos políticos (não que eles não mereçam) em vez de nos presentear com outro romance.
Cabeça de papel é livro necessário para fugir à mesmice terrosa e faminta das letras pátrias. Um retrato cáustico da elite carioca e da imprensa dos anos 60 e 70, da qual o próprio autor fez parte: as vaidades, o jogo do poder, o fisiologismo sacana e as sacanagens propriamente ditas. O Francis romancista tem um estilo de texto, bebido em fontes americanas, que me espantou nas primeiras páginas, mas que se torna natural no decorrer do livro e acaba por combinar com o tema e com a rapidez com que as cenas se sucedem.
Não vou fazer sinopse, que é coisa de acadêmico. Recomendo a leitura e basta.
Bitucas
Vão lá ler a definição de classe jecalta na Prosaica; conceito que percebi, mas não tinha conseguido colocar no papel (ou na tela) com tanta clareza.
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A busca da felicidade, no fim das contas, é uma pulsão de morte.
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Insulfilm cheio de bolha. Me dá pena e vontade de rir ao mesmo tempo.
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Curioso como cada povo tem preferência por certos timbres de voz. Os narradores argentinos, por exemplo, têm a voz rouca como se tivessem a garganta tostada por cinquenta anos de tabagismo.
Marcos Mundstock, de Les Luthiers, não me deixaria mentir se estivesse vivo. Aliás, fica a dica; Les Luthiers era um grupo muito bom. Também tem o narrador dos vídeos do Peter Capusotto.
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O artista é sempre um cortesão. Como as nossas elites são ignaras, é muito certo que os seus menestréis e bobos da corte sejam um coio de chimpanzés. Quando confrontados, limitam-se a jogar bosta na audiência.
E a opinião do bobo da corte não vale: ele sempre vai defender quem o alimenta.
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As nossas elites têm mentalidade de classe média baixa. Roubam e, em vez de comprarem um chalé na Suíça, compram uma cobertura cafona na Praia Grande. A alma mal lhes chega aos tornozelos; sofrem de nanismo anímico.
Ao que parece, o único que fez algo bom com o caixa 2 foi o Temer, que, dizem por aí, comprou um estoque imenso de sorvetes Häagen-Dazs.
Galardão
Na juventude, eu escrevia poemas horrorosos, mas que meus colegas de faculdade, modernetes, achavam lindos; nem todos os colegas, pois havia os honestos, poucos, aos quais sou muito grato, sempre. Era a época em que eu tinha problemas sérios de pontuação, embora estivesse na faculdade de Letras. Aliás, pontuação é a última coisa que se ensina na faculdade de Letras, num país em que as chances de sair semianalfabeto do ensino médio são altíssimas. Problemas estruturais.
Um dia, um colega estava preparando poemas para mandar para um concurso literário organizado pela Prefeitura de Guarulhos; coisa de que os municípios fariam bem em se eximir. Pensei em mandar uns meus também, por que não? Mandei três, acho, e tive um selecionado. Horroroso, cheio de maneirismos ridículos, de punhos de renda sujos. Precisei ir a Guarulhos, ao anfiteatro da biblioteca do Centro, para receber o prêmio: vinte exemplares de uma coletânea na qual estava, lógico, o meu poema. Foi feita uma solenidade e todos os laureados foram ao palco agradecer, no esquema Show da Xuxa, um beijo pro meu pai, um pra minha mãe e outro pra você. Todos acharam uma boa agradecer a Secretaria de Cultura (ou Educação) local; fui na onda.
Saí da biblioteca com um embrulho de papel manilha debaixo do braço. Em casa, vi o que tinha na coletânea e fiquei com vergonha. Isso faz vinte anos, e os vinte livros continuam escondidos. Não tive coragem de dar nenhum exemplar a ninguém, tampouco coragem de me livrar deles. Até há pouco, eles estavam lá, num canto da casa dos meus pais, com a cola da lombada toda ressecada. Agora que os meus pais estão deixando a capital, os exemplares devem ter ido parar numa dessas geladeiras de livros que há por aí, o que me tranquiliza: nunca mais serei obrigado a vê-los.
P. S.: descobri que há exemplares dessa coletânea à venda na internet. Talvez eu precise os ir comprando para destruí-los.
Brasília
Vi sedes de órgãos governamentais em vários países, tanto por foto como ao vivo, no caso de Buenos Aires, Montevidéu e Roma. O que me chama a atenção é como essas sedes são em prédios, digamos, normais. Prédios comuns, que têm porta para rua, frequentemente sem recuos laterais, ou seja, colados nos vizinhos.
Chama a atenção a diferença patente com Brasília, onde cada prédio é um monumento, isolado, como se tivesse sido desenhado para que não se pudesse chegar perto. Espaços vazios, gramados com pedras e montículos, espelhos d’água. Talvez seja essa a imagem que a Novacap queira passar: um não me toque, um fique aí, seu fedido.
Tirar a capital do Rio foi um erro. Em uma cidade semivazia, as mutretas aconteceram sem que houvesse possibilidade de averiguá-las com profundidade. Brasília era dos militares, da burocracia e da poeira do Cerrado. Só mais recentemente ela se tornou uma cidade grande, mas, mesmo assim, a uma distância segura dos centros de pressão, Rio e São Paulo.
José Bonifácio que me perdoe, por que ele foi um grande entusiasta de jogar a capital para o Hinterland brasílico, mas, passada a ameaça marítima, foi uma cartada de Vargas, no seu mandato democrático, e encampada por Kubitschek: governar sem a pressão da choldra, sem as bocas abertas na porta do acanhado Catete, que se parece mais com um bolo de casamento em comparação com a amplidão (e a cafonice) do Palácio do Planalto e a sua estética de eletrodoméstico. E as portas do Catete dão para a rua, diretamente na calçada, que despautério! O período mais beneficiado por esse isolamento foi o do regime militar: fizeram e desfizeram no meio do deserto.
A ida da capital para Brasília fez com que o Rio fosse abandonado à própria sorte, tornando-se o inferno que se vê hoje.
Brasília foi pensada para manter o povo longe das instituições, uma capital sanitizada.
"Talvez eu precise os ir comprando para destruí-los."
Gerardo Mello Mourão fazia isso com seus livros de juventude.
Obrigado pela menção e sejamos impiedosos com os jecaltas, caro Kovács. A classe é uma das tantas imposturas do território. De resto, ótima newsletter.