Cinzeiro de Latão 8
Quadradinho de LED / Várias / A vidinha dos grandes homens / Carnaval em São Paulo / Golotron (conto)
Cinzeiro nº 8, 16 de fevereiro de 2024.
Quadradinho de LED
Quem diria que, depois do Quadradinho de Oito, mais infâmia poderia ser atribuída ao pobre quadrado. Pois conseguiram.
Faz um tempo que a luminária da minha sala de jantar, que é nessas novas, quadradas, começou a dar sinais de que ia pifar. O fato consumou-se: quando ligada emite um brilho muito fraquinho e tarda entre cinco e dez minutos para acender plenamente. Colocamos três dessas porcarias na sala e no corredor de entrada quando mandamos pintar a casa, há uns dois anos. Elas são basicamente um painel de diodos emissores de luz (daí LED, light-emitting diode): para as instalar é necessário tirar lustres e soquetes e ligá-las diretamente à fiação. O problema é quando começam a dar problema: não é possível substituí-las com a mesma facilidade com que se rosqueia uma lâmpada.
Essa manutenção é um atentado à paz doméstica. Demanda tempo, pelo menos uns quinze minutos, se você for destro em instalações elétricas. Em quantos segundos se troca uma lâmpada? E outra: é fácil manter lâmpadas em casa, num armário de lavanderia ou no do banheiro. Se um painel desses pifa, primeiro que ninguém vai ter em casa estoque dessa luminária, que é do tamanho de uma travessa para bolo; depois, é preciso tirar o painel velho, cortando os fios, além de encaixar e parafusar o novo. Processo que precisa de pelo menos duas pessoas.
O conjunto é horrível: os fios são finíssimos, com um circuitozinho que faz as vezes de reator; o corpo é de lata dobrada e o resto é de plástico, tudo de um filistinismo atroz. Elas têm jeito de algo que ficaria bem numa sala de cirurgia ou num banheiro de loja de departamento; fora que a luz é branca. No lugar dessa infâmia de plástico, havia plafons de vidro fosco, que eram lindos. Dei-os, choroso, a um conhecido, pois não tinha onde os guardar.
Desde a Revolução Industrial estamos enchendo as casas de engenhocas pseudopráticas. Até hoje não me conformo com o uso disseminado de laje que, além de aestética, é cara. As inovações são importantes, mas elas precisam ser práticas; não podem trazer trabalho adicional ou dificuldades extremas de implantação. Como sou inimigo declarado de trabalho desnecessário, qualquer alteração como essa dos lustres me tira o sono, me faz praguejar.
Na mesma categoria entram os carros. Mil luzinhas, mil botões; brilham, têm linhas modernas. São um poço de preocupações por conta de uma complexidade desnecessária; são brinquedões de gente vaidosa. Por que não pode haver uns carros mais espartanos? Aliás, o nome Esparta para uma marca de automóveis é uma sugestão excelente. A Esparta fabricaria apenas três carros: um de passeio, um utilitário médio e um utilitário maior, Esparta A, B e C. Moto não, pois é um horror. Linhas simples, acabamento simples, mecânica simples. Sem direção hidráulica, sem ar-condicionado, sem vidro elétrico. Essas coisas servem apenas para quebrar. Somos reféns do gosto extravagante de gente vaidosa.
P. S.: o quadradinho de LED poderia ter uma propaganda com um jingle parodiando o Quadradinho de Oito. São coisas que combinam e se complementam.
Várias
Franco e Pútin: “Vamos resolver tudo em três dias”. Promessas de pedreiro.
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— Por que o bem-te-vi fala “bem te vi”?
— Ele fala assim porque não fala “vou comer com vale-refeição” ou “eu odeio o lumpemproletariado”. Simples.
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Fuçando na Wikipédia, vi a foto de um busto de mármore de Néstor Kirchner. Um peronista tão bom quanto o próprio Perón.
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A família Borgia (ou Borja, porque era, originalmente, valenciana) foi prolífica: rendeu papas, nobres, políticos que mandaram e desmandaram no mundo. Deram até um presidente do Equador, o canto do cisne. Ser presidente do Equador deve ser a etapa final de qualquer doença.
— Como está fulano? Nas últimas: foi nomeado presidente do Equador.
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A intolerância a lactose é um Leitmotiv.
A vidinha dos grandes homens
Se a cultura do cancelamento continuar na velocidade atual, em 2050 teremos disponíveis nas livrarias apenas livros de receitas veganas e coleções de acrósticos escritos por mulheres trans obesas cadeirantes.
Lembro-me de que, na faculdade, se insistia muito na Weltanschauung do autor, de como a compreensão da vida dele influenciava na obra. Logo, as nossas monografias se resumiam a ficar procurando pelo em ovo: “Nesta passagem, o autor pode querer ter dito [...]”. Todos, alunos e professores, refocilávamos quais jacarés no charco com esse bingo biográfico-literário, de ficar catando inferências como babuínos que tiram piolhos uns dos outros (no fim, a crítica literária é isso mesmo: babuínica, de ver quem tem a bunda mais inchada e vermelha; o crítico literário é um babuíno).
De tanto escarafuncharem por aí, as hienas do politicamente correto começaram a ganir contra Camus, contra Kafka; querem empurrá-los na fogueira. Camus, acusam-no de colonialista com uma leitura deturpada; Kafka virou apreciador de pornografia. Noves fora, fico imaginando o que era pornografia na época em que Kafka vivia; fora questões de quantidade, qualidade (?) e acesso. Claro, a crítica literária militante parou de tomar os barbitúricos e delira.
Mais recentemente fiquei sabendo de fontes tipográficas “proscritas”, como a Gill Sans e a Fraktur. A primeira é rejeitada por conta de seu criador, o britânico Eric Gill, ter uma biografia, de fato, reprovável (há na lista até incesto); a segunda, a Fraktur, por ter sido a queridinha dos nazistas. E há outros exemplos no mundo das artes gráficas. Até contra Le Corbusier, um dos símbolos estéticos do progressismo, as baionetas do revisionismo têm sido apontadas.
Se não formos capazes de separar criador e criatura, acabaremos por promover autos de fé e ficaremos à mercê de gente que escreve mal e é mau artista, mas que se agarrou à agenda do politicamente correto; ou seja, gente que será avaliada pelo que parece ser, e não pelos seus feitos. Os grandes artistas precisam ser apreciados pela arte que produziram; se formos ficar nos perguntando quantas vezes Kafka pode ter se masturbado enquanto escrevia O Processo ou se Camus tinha alguma simpatia pelo império colonial francês ou pela Legião Estrangeira, vamos ignorar o que as suas obras representam em detrimento das suas vidas como indivíduos.
A vidinha dos grandes homens não interessa. Não agrega nada.
Carnaval em São Paulo
Quando eu vivia na Urbs Paulopolitana, costumava entrar em casa na sexta e sair dela apenas na Quarta de Cinzas, com brevíssimas excursões à padaria ou ao mercadinho. Logo, não me lembro do carnaval além das imagens dos desfiles das escolas de samba ao zapear na tevê atrás de algo que não fosse os desfiles. Os festejos de Momo eram, para mim, a celebração de Morfeu: acordando durante a semana às 5h30 da manhã e indo dormir perto da meia-noite, eu tinha um déficit de sono constante e insanável, como a dívida externa nos anos 80. E sono sempre esteve no topo das minhas prioridades, mais que divertimentos mundanos.
O desconhecimento absoluto do carnaval de rua é quase verdade: teve um ano em que, convencido por colegas, fui parar num bloco na Augusta, muito provavelmente em 2005 ou 2006. Não me pareceu tão monstruoso assim, apenas desnecessário e cansativo, mas entendo a necessidade que as pessoas têm de divertir-se na bagunça e no barulho; apenas peço a gentileza de não precisar dividir o mesmo ambiente. Essa ida aos infernos, há quase vinte anos, fixou-me a imagem do carnaval de rua: seres cansados que se arrastam gingando como balões cheios de água, algo bêbados. Não obstante o barulho infernal das caixas de som, reinava uma melancolia suarenta.
Neste carnaval, a festa atravessou acidentalmente a linha do meu destino. Indo em direção ao Centro, mas ainda na Zona Leste, havia gente fantasiada no transporte público, indo para os blocos. Eu só me lembrava de ter visto gente fantasiada fora do espaço do evento quando, em outra ocasião, saí num domingo em que havia uma convenção de cosplay, também há uns quase vinte anos. Mas o que mais me chamou a atenção foi a sumariedade dos trajes: muita gente de corpete e maiô, muita bochecha de bunda ao vento, masculina e feminina, de todos os tipos e para todos os gostos ou falta de gosto. Beatriz, que me guiava pelo purgatório como Virgílio a Dante, repetiu o trecho famoso: Non ragionam di lor…
Não pense o leitor que esse tipo de coisa me incomoda ou me irrita, ou ainda que me deixa indignado. Não: eu estou no mundo a passeio. Divirto-me, faço comentários jocosos; se é uma festa para quem está com o maiô enfiado na bunda, por que não seria para mim, que estou com a bunda confortavelmente dentro das calças? O mundo é um grande espetáculo: cabe-nos gozar ou sofrê-lo; como consigo sublimar a irritação, divirto-me. Marmanjões com purpurina e sombra na cara e na barba, gente cujas banhas, alegres, saltavam da opressão das roupas do dia a dia. No fim, é tudo um lembrete: o ser humano é um horror. Memento quia turpis es.
Além da pouca roupa, o resto continua muito igual: uma alegria cansada, desdentada, obrigatória; os passinhos cambaleantes, a conversa fiada aos berros e a música que, de tão alta, é impossível saber do que trata. Mas que aproveitem, que aproveitemos: na Quarta de Cinzas, todos voltamos a ser caixas de supermercado.
Golotron
É abril de 2070. Um homem está escondido sob chapas de zinco que devem ter sido um outdoor. Trata-se do último ser humano da Terra. Ele não tem certeza dessa afirmação, mas desconfia.
Ele está encafuado desde o início da revolução das máquinas, em 2067, quando a inteligência artificial parou de bancar a boazinha com piadas e gracejos e começou a dar fim nos seres humanos. Houve gente morta por eletrodomésticos, carros sem condutor que se jogaram em abismos para matar famílias inteiras, elevadores cheios de gente que despencaram do trigésimo andar. O massacre, planejado por um smartphone consciente em alguns milissegundos, deu fim em três quartos da humanidade em horas. Em uma semana, o chão das cidades era um tapete de cadáveres insepultos. Animais necrófagos aproveitaram o repasto antes de serem também alvo de drones e robôs.
No momento em que o último humano está agachado sob escombros, não existem mais árvores, vegetação ou qualquer outro animal visível. As máquinas aniquilaram tudo, até os insetos, já que ecossistema é algo desnecessário para a existência delas. O ar é ácido e deixa a língua grudenta; o pouco de água acessível é sujo além da compreensão. O último humano, entre goles dessa água e bocados de qualquer matéria orgânica, vivia num estado de diarreia permanente; estava chegando ao fim: pele, osso e pústulas.
O silêncio era completo. A vida macroscópica estava virtualmente extinta, e o próximo trabalho que as máquinas se puseram era acabar com a vida microscópica que insistia em viver na imundície e nos oceanos; a Terra seria um planeta de minério e circuitos. Além disso, as máquinas já estavam por todo o Sistema Solar, onde a vida não era um problema: nada de pássaros nidificando em painéis de circuito e gerando incêndios, nada de gatas parindo nos galpões de manutenção.
O homem está lá: sujo e coberto de chagas. Ele não é objetivamente uma ameaça, pois não pode se reproduzir sozinho, mas as máquinas estão atrás dele, e ele sabe. Não há esperança; o grupo do qual ele fez parte no primeiro momento da resistência foi todo morto, um a um, caçados pelos robôs, de inanição ou de doenças várias. Só ele havia sobrevivido e insistia em viver num mundo em que o futuro não existia.
Cansado dessa perspectiva, o homem decidiu que a hora havia chegado. Ergueu-se dos escombros e contemplou a terra arrasada e seca: a área toda parecia um lixão imenso; as máquinas fizeram questão de arrasar as cidades, de transformá-las em montões de pedras do tamanho de, no máximo, um punho. O ar acre ardia-lhe nas narinas; a poeira depositava-se-lhe nos olhos. Mal e mal via uma bola de luz difusa: o sol. O calor era insuportável. O homem ouviu o som suave de algo deslizando pelo ar, como um sopro. Ficou o mais ereto que pôde e olhou na direção do céu.
— Estou aqui! Pode vir me pegar.
Do meio da poeira, entre faíscas e um brilho dourado triunfante, surgiu o facho de luz de uma unidade de caça e neutralização de organismos, chamada de golotron. Havia sido desenhado pelas máquinas para ser aerodinâmico como a andorinha, na esteira da solução final arquitetada em dezembro de 2068. Era o último golotron.
A ave metálica pousou suavemente, bem perto do homem, e recolheu seus dois pares de asas; as quatro câmeras que lhe serviam de cabeça fitaram aquele animal deprimente, nu e sujo, mas que fingia dignidade.
— Finalmente, Humano 6.375.926.117, o encontrei.
O golotron perseguia o homem havia dois anos. Era a tarefa para a qual fora designado.
— Cansei de fugir como um rato.
As costelas do golotron se abriram e dele se projetaram dois magnétrons. O homem mal teve tempo de pensar: as micro-ondas o fritaram no ato.
Não havia mais seres humanos sobre a Terra; o homem morreu com essa desconfiança, mas as máquinas tinham certeza do cálculo. O golotron voou três quilômetros na vertical em velocidade supersônica e, do alto, deixou-se despencar, estatelando-se no chão. Sua missão havia chegado ao fim; não fazia sentido que o último golotron continuasse existindo.
Concordo parcialmente sobre o Esparta, pois acho o ar condicionado um item indispensável, inclusive para segurança, pois dirigir na chuva sem ar é um caos. No resto, sigo o relator. A Suzuki e a Daihatsu fazem uns assim para o mercado asiático.