Cinzeiro 81, 12 de julho de 2025.
O Barão e o Doutor Zoltán
O toque da campainha pegou o Barão no contrapé. Na verdade, foram duas surpresas: primeiro, porque ele jurava ter mandado Jorge desligar o dispositivo e, depois, porque visita fora de hora é o ápice da má educação. E ninguém tinha avisado que vinha, ainda mais perto da hora do almoço. Jorge, que regava as samambaias na área, foi ao portão e veio à sala, onde o Barão estava ouvindo Wagner:
— Barão, está aí um homem que se apresentou como Doutor Zoltán, o Magnífico, acompanhado de um anão.
O Barão se levantou e tirou o Wagner da vitrola. Quantos anos fazia que não tinha notícias de Marquinhos? Pelo menos uns vinte. Doutor Zoltán foi o nome artístico que Marcos adotou quando abandonou a faculdade, onde era o primeiro da turma, com a promessa de um futuro brilhante na academia, e fugiu com o circo para se tornar mágico. O anão, porém, era novidade.
— Pois mande os dois entrarem; depois, veja algo para o almoço.
Jorge correu ao portão e voltou com os dois homens.
— Barão, aqui estão o Doutor Zoltán e seu assistente, Mestre Sigmund.
Sigmund não ia além da cota de um metro: era branco desbotado, além de calvo e dono duma barba branca que lhe chegava ao umbigo. Parecia um anão de conto de fadas. Zoltán regulava de idade com o Barão, mas mantinha os cabelos corvinos e empomadados. Lembrava vagamente Béla Lugosi, principalmente porque estava vestindo o fraque de trabalho e a cartola.
O Barão e o Doutor se cumprimentaram com grande alegria. Jorge estava confuso: o Barão não costumava ser tão expansivo, ainda mais nesse tipo de imprevisto. O factótum ficou parado na porta observando os dois amigos que se reviam até que sentiu uma queimação no rosto: Sigmund, o anão, olhava diretamente para ele, com uma expressãozinha má e com uns olhinhos azuis que pareciam de boneca. Jorge pediu licença e informou aos convivas que ia para a cozinha tratar do almoço; saiu o mais rápido que as suas pernas permitiam sem dar a impressão de correr. A queimação passou assim que Jorge chegou à cozinha.
O Doutor Zoltán apresentou o anão:
— Barão, este é Sigmund, o meu assistente de palco, mas que também tinha o seu próprio número. Ele é pálido assim porque é albino, diz que é parente do Hermeto Pascoal…
A aparência de Sigmund se completava com a roupa: calças curtas com suspensórios, uma coisa meio tirolesa. O pequeno homem disse algumas palavras amáveis com sotaque nordestino, provavelmente do interior de Pernambuco, pensou o Barão. Após agradecer a recepção, Sigmund disse que era sobrinho dum primo do músico.
O Doutor e o Barão tinham trocado muitas cartas, cuja frequência foi diminuindo até cessar por completo. As vidas dos dois haviam se tornado muito diferentes, o que causava alguma incompatibilidade nos temas de conversação. Enquanto o Barão lhe mandava uma carta com algumas considerações gerais sobre a filosofia de Spinoza, o Doutor devolvia outra versando sobre a importância da massa exata nas bolas para os malabares, cujo texto vinha acompanhado das equações necessárias. Mas o diálogo ali se desenvolvia com alegria: o Barão quis saber tudo dos vinte anos de hiato comum.
O Doutor explicou que tinha se cansado de trabalhar para um empresário de circo comum, um uruguaio trambiqueiro, dono do Circo Hermanos Onetti, que atrasava pagamento e não reformava os trailers. Fazia quinze anos que Zoltán tinha montado o seu próprio circo, o Circo Psíquico do Doutor Zoltán. Com a própria companhia tinha girado toda América do Sul e o México. Agora, o circo ficaria montado um mês num terreno perto do Tiquatira.
— Aliás, Barão, conto com a sua ilustríssima presença e a do seu querido ajudante numa das funções. Por conta da casa, claro.
Zoltán passou ao Barão dois ingressos de cortesia: o Barão tinha um mês para elaborar uma desculpa para não ir.
O mágico explicou como funcionava o seu circo. Nada de palhaços ou de malabares: assuntos do passado, coisas para crianças. Os números estavam todos ligados às ciências ocultas: levitações, adivinhações, telecinese. “Coisa fina, Barão.” Durante os anos que foi mágico no circo do uruguaio, Zoltán foi estudando obras místicas para aprimorar os seus números. Logo, trocou a prestidigitação pelos fenômenos psíquicos. O Doutor explicou ao Barão, em linhas gerais, como conseguia fazer uma senhora da plateia levitar sem nenhum tipo de truque, apenas com telecinese, e muitos outros números.
O Barão, cético, foi ouvindo como quem liga a televisão apenas para fazer ruído. Achava que os anos de vida mambembe tinham cozinhado o cérebro de Zoltán. Por outro lado, ele tinha o seu circo… mas saía de fraque sob o sol tremendo de verão que derretia o asfalto. Havia muitas questões do ar. Zoltán seguiu falando sobre como montou o seu circo, com vinte estrelas do psiquismo circense. Ele, como bom olheiro, ia aos terreiros e aos centros espíritas atrás de talentos. Quase ninguém concordava em expor os seus talentos num circo, mas esses vinte excepcionais concordaram. E eram, de fato, gente fora de série. Como Sigmund, que trabalhava num terreiro em Salvador.
O Barão ouvia tudo sem acreditar direito. Como um homem como Marcos, uma promessa na época da faculdade, tinha se reduzido a um tipo de doido? Um doido estabelecido? Sim, mas ainda assim doido. Contudo, mesmo na doideira, o Doutor Zoltán se expressava bem: ouvi-lo era um refrigério: o ritmo da fala, os gestos, o vocabulário. Era o mesmo da faculdade, apenas os temas tinham mudado: de economia para metempsicose. A maioria dos interlocutores acidentais do Barão se comunicava com ruídos e monossílabos.
Sigmund até então tinha se mantido em silêncio, bebericando o café que estava na mesinha de centro. Foi o toque suave da xícara no pires que fez Zoltán se lembrar de Sigmund. O Doutor pediu para que o anão falasse um pouco de si.
— Meu papel no circo de Doutor Zoltán é muito simples: eu faço adivinhações e previsões. Adivinho a cor da roupa íntima das moças e também falo das origens do universo e de como tudo terminará. Entre esses dois temas há outros infinitos. Minha aparição é sempre popular. Há gente que vem seguindo o circo apenas para ver o meu número.
O Barão ouviu o discurso breve de Sigmund com uma sobrancelha arqueada. O sotaque de Sigmund parecia, agora, um pouco artificial, como se fosse personagem de novela.
— Se o Doutor Zoltán me permitir, posso fazer uma demonstração — disse Sigmund.
— Se o Barão não se opuser… — disse o Doutor olhando para o Barão, que concordou com a cabeça, em silêncio e com algum fastio.
Sigmund tomou a liberdade de arrastar a mesinha de centro para um canto, o que fez com movimentos que poderiam ser classificados como grotescos ou engraçadinhos, de acordo com quem tivesse visto a cena. Sentou-se no meio da sala, em posição de lótus.
Zoltán disse no ouvido do barão:
— Sigmund é mestre na meditação.
Um longo silêncio se seguiu. O barão quase dormia na penumbra quando Sigmund se levantou, ficou estático e começou a falar, mas com outro sotaque que o Barão não conseguiu identificar.
— A guerra, senhores, vai abalar o mundo ainda por muito, muito tempo.
“Sem novidades”, pensou o Barão.
— As armas vão evoluir…
“Certo, é algo previsível mesmo para quem não tem percepções diferenciadas…”, pensou de novo o Barão.
— Eu pediria ao Barão que parasse de me retrucar.
Aí o Barão sentiu um arrepio: ele não tinha verbalizado os seus pensamentos.
— Continuando. As armas serão outras. Não serão atômicas e nem paus e pedras, como disse Einstein, achando que tinha encontrado um wit. As armas atômicas não serão usadas, pois a reação em cadeia causaria o fim da humanidade, e os dignitários das nações que possuem essas armas sabem disso. Um ICBM é apenas uma arma de dissuasão. É um cala-boca de urânio, um brinquedão caro e chique.
“Já tivemos um prenúncio da novidade nos conflitos em curso: a aurora do drone, que deixou de ter fins apenas pacíficos, como esses que as pessoas usam para filmar ou tirar fotos, e agora, robustos, carregam mísseis, têm autonomia para grandes distâncias e são terrivelmente mortais. Eles, porém, têm um defeito: fazem muito barulho. Muitos são neutralizados porque o zumbido demoníaco desses aparelhos os entregam. Eles precisam contar com a velocidade. O futuro nos guarda algo mais tenebroso: as blowballs.
“Uma blowball é uma evolução do drone, que dispensa o motor elétrico de alta rotação, hoje comum. Enquanto o drone é dotado de hélices que, por sua forma, se valem da aerodinâmica para voar, mais ou menos como o helicóptero, a blowball dispensa as hélices, porque voa ionizando as moléculas de ar ao redor.”
O Barão arregalou os olhos e continuou ouvindo.
— O nome vem do inglês para a semente do dente-de-leão, que é uma cipsela com um papilho na ponta, com a diferença que a semente da flor voa combinando a massa diminuta com a aerodinâmica. A blowball terá o aspecto de uma espinha de peixe sem a calda, ou de uma folha oblonga de árvore; a sua estrutura será de folhas de alumínio organizadas como se fossem papelão, com uma estrutura aerada. No lugar das hélices, a blowball tem eletrodos que ionizam o ar, dando ao aparelho direção e velocidade, como velas metálicas. Será frágil num todo, mas a velocidade e o silêncio do deslocamento superarão as desvantagens. A tecnologia será desenvolvida durante o que resta desta metade de século, usada primeiro em brinquedos — o termo blowball será nome comercial desse joguete, embora o termo técnico seja ionocraft —, e o seu primeiro uso militar será nos anos 2070. O aparelho chega sem fazer barulho e se mostrou extremamente destrutivo nos primeiros ataques. Com o tempo, os soldados aprenderam a perceber a sua aproximação: dependendo do clima e da umidade do ar, os pelos corpóreos se eriçam. Mas, quando essa proximidade é sentida, a chance de escapar da morte certa já é próxima de zero. Os países mais poderosos terão frotas imensas desses eletroplanos não tripulados e se atacarão com elas. Será um período da história conhecido como a ‘era da destruição silente’.
“A blowball já existe em protótipo, hoje algo ainda meio ridículo, parecido com um papagaio feito de folhas de alumínio, não tendo aplicação prática a não ser conseguir erguer-se no ar aproveitando o vento iônico.”
Nisso, Sigmund parou de falar e despencou no sofá. O Barão estava boquiaberto; a imagem lhe pareceu terrivelmente realista. O seu sobrinho, uns diantes antes, tinha falado do tal ionocraft. O Doutor Zoltán vibrava de alegria, pois tinha percebido as reações do Barão; o dono do circo estava preocupado com o páthos do número, o que foi alcançado com sucesso. Ainda mais se tratando de alguém difícil de abalar, como o Barão. Claro que o tema fisgou o Barão, mas não servia para as grandes audiências.
— Isso que Sigmund disse é assombroso. O cenário daqui para frente é o mais terrível possível — arrematou o Barão.
— Barão, não estaremos aqui para ver. A não ser que o senhor pretenda chegar aos 150 anos… — complementou o Doutor.
O Barão tinha ficado muito impressionado com o oráculo, previsão, ou o que quer que fosse. Perguntou a Zoltán como aquilo era possível.
— É simples e não tem nada de místico: o misticismo é tão real quanto a mágica. Acontece que os vários tempos são simultâneos, em universos diferentes; cada universo gera uma frequência de rádio altíssima. Sigmund tem alguma alteração no cérebro (no hipotálamo, tenho quase certeza) que lhe permite sintonizar esses sinais e perceber a realidade do futuro, e também do passado. É pura física. Porque os tempos são todos simultâneos, meu caro Barão: o seu decorrer lento e a sua linearidade são uma percepção nossa. Mas isso é história para outro momento.
A explicação agradou ao Barão. De fato, ele não estará vivo até lá. Segurou-se para não perguntar de si a Sigmund, o que lhe pareceu mesquinharia egoica. Ao mesmo tempo, esse julgamento sobre si o acalmou. O futuro, como dizem, a Deus pertence. A imagem da blowball, chegando silenciosamente com uma bomba, porém, o atormentaria ainda em sonhos nas semanas seguintes.
Nesse momento, Jorge entrou na sala e anunciou o almoço; se virou no mesmo instante para evitar o anão, embora ele estivesse no sofá com os olhos fechados. Os três homens passaram para a sala de jantar. Sigmund não tinha falado mais, parecia que estava recobrando as forças. Enquanto o Barão e o Doutor comiam e trocavam amenidades e pormenores dos vinte anos em que não se viram, Sigmund comia de maneira educada, mas com voracidade. Aqueles dentinhos rápidos pareciam ser capazes de esfiapar carne se necessário. Jorge pôs a comida na mesa e saiu o mais rápido que pôde.
Os homens terminaram a refeição, tomaram café, e a dupla foi embora sob o sol violento do verão paulistano. Zoltán dava passadas largas; Sigmund, para alcançá-lo, dava três ou quatro, quase saltitava. Os pesadelos com a blowball dariam a desculpa que o Barão esperava para declinar o convite de ir ao circo psíquico.
Figueiredo
Por esses dias terminei de ler Me esqueçam: Figueiredo: A biografia de uma Presidência, de Bernardo Braga Pasqualette. Primeiro, a nota óbvia: se trata de obra essencial para entender um período complexo da nossa história. Depois, uma decorrência natural: o governo Figueiredo é tratado por aí como o último segmento do regime militar, numa simplificação burocrática. O livro mostra que foi muito além disso. A própria candidatura do general João Figueiredo, em vez da do ministro do Exército, general Sílvio Frota, já indicava que a escolha tinha um motivo. O homem errado pelo motivo certo: Figueiredo foi o ungido por Geisel para dar continuidade à abertura política; Frota era da chamada Linha Dura, que estava doida para desfazer os arranjos cujo intuito final era a devolução do poder aos civis.
Figueiredo, entre porradas na mesa e inações deliberadas, regeu o Réquiem do regime: nos conduziu do Milagre Econômico à estagflação dos anos oitenta, passando pelo atentado no Riocentro e por ter dito não à realização da Copa de 1986 aqui. Rejeitando a condução deliberada do processo para a escolha do seu sucessor, Figueiredo jogou a batata quente no colo dos políticos alinhados ao regime e eles mesmos se queimaram, abrindo espaço para a mineirice morna de Tancredo Neves, que, no fim, foi mesmo o Tancredo Never, trocadilho-prenúncio feito pelo próprio Figueiredo.
Deixando o Palácio do Planalto por uma porta lateral no dia da posse, fosse por não concordar em passar a faixa a Sarney por questões legais ou pela sua leitura do texto da Constituição de 1967, Figueiredo, carrancudo, irascível, mas também com momentos de lucidez plena, precisa ser visto mais como um agente pela democratização do que a ponta da cauda do escorpião.
Bitucas
O assunto do hino paulista precisava ser resolvido. O poema escolhido, de Guilherme de Almeida, por ser de versos livres, não era bom para musicar, mesmo que Spartaco Rossi, Sergio de Vasconcellos-Corrêa e Mozart Kail tenham dado o seu melhor.
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É 9 de julho. Vejo a bandeira da minha terra até no sorriso alternado do homem da terra: o branco do dente que insiste em resistir e o preto do dente roído pela cárie do esquecimento.
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Chega um momento em que não há mais assuntos comuns entre pais e filhos: os temas de interesse são absolutamente díspares. Por isso aguardo uns quinze dias para ver os meus pais, caso contrário, não há assunto comum a não ser ficar repisando conversa de elevador.
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O ruim das férias escolares é arrumar mil atividades para as crianças, sendo que, no geral, as nossas, de pais proletários, não param. O bom das férias escolares é que a escola para de nos torrar o saco e não há nenhuma atividade de socialização.
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Nos tempos iniciais era mais fácil: se dizia “faça-se a luz”, e a luz se fazia. Agora, ficamos na dependência da Enel ou da CPFL (ou outra, conforme o seu domicílio) e dias vão nisso, mais que os necessários para que o mundo fosse feito.
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Bom final de semana.
Sigmund e Zoltan eu não conhecia. Mas Tiquatira eu conheço bem! 😄
Sempre achei que o Hino não-oficial do Estado de São Paulo é a marcha Paris-Belford, utilizada na revolução de 32. OK, não tem letra, mas tem espírito.