Separata I - Amador Bueno: cada um vê o que quer
Texto originalmente integrante do Cinzeiro 14
Amador Bueno: cada um vê o que quer
Nota prévia: o texto que se segue é a adaptação da comunicação feita em um congresso de história latino-americana há mais de dez anos. Como era um texto acadêmico, estava às raias do ilegível; resgatei-o de um pendrive que usei muito, mas hoje é um museu do meu passado. Adaptei o texto, pintei-o com as minhas cores opinativas e arejei vocabulário e estilo. Espero que lhes seja pelo menos palatável.
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A Aclamação de Amador Bueno ocorreu em 1640, em São Paulo; fato esquecido tanto pelo povo, cuja carência de memória é famosa, como pela escola, cuja carência de conhecimento é notória. Como se não bastasse, a documentação sobre o fato é mínima à beira da obscenidade; pouca gente escrevia naquele então, e o analfabetismo era a regra.
A ideia de aclamar um rei em São Paulo foi consequência da Restauração da Independência portuguesa, fruto da revolta da nobreza lusitana contra o domínio espanhol. A movimentação culminou na aclamação de dom João, Duque de Bragança, como Rei de Portugal, em 1º de dezembro de 1640. É o fim da União Ibérica, junção das coroas peninsulares sob o cetro dos Habsburgos que começou com a morte do Cardeal-Rei dom Henrique I, em 1580, que não tinha herdeiros; o sucessor, por conta dos casamentos dinásticos, era o monarca espanhol, Felipe II. Rei tardio e acidental, Henrique era tio-avô de dom Sebastião, desaparecido dois anos antes, quando tentou bancar o cruzado no norte da África e foi morto sem deixar descendência. Dom Henrique tentou pedir ao Papa a dispensa do seu celibato para poder casar-se e garantir um herdeiro, mas houve dois entraves: a idade, pois tinha 66 anos quando assumiu o trono, e um possível conluio da Santa Sé com a monarquia espanhola para negar o pedido de dispensa. Como se fosse necessária essa tramoia numa época em que a impotência não tinha remédio e em que uma pessoa de 66 anos já estava muito além da expectativa de vida, mesmo para alguém da nobreza; fora a diabetes.
Voltando ao século XVII. A notícia da Restauração chegou ao Brasil apenas no ano seguinte, em 1641; Dom João IV foi aclamado Rei na Bahia em fevereiro, em 10 de março no Rio de Janeiro e, alguns dias depois, nas vilas de Santos e São Vicente. São Paulo de Piratininga, no seu isolamento, deu de ombros, pelo menos inicialmente.
A união das coroas permitia que os naturais das duas nações peninsulares circulassem pelo Império, estabelecendo-se onde se lhes aprouvesse, o que fez São Paulo ter uma colônia espanhola considerável; talvez umas duzentas pessoas, tendo em vista que a população da cidade rondava 1.500 habitantes. Os espanhóis, por serem mais numerosos dentro da monarquia dual, espalharam-se mais pela América Portuguesa do que os portugueses pelas possessões da coroa de Castela. Os castelhanos estabelecidos no Planalto e que tinham relações comerciais com Buenos Aires temiam ser prejudicados com o renascimento de Portugal como nação fora do império espanhol. Mas que relações valeriam um risco tão grande, se São Paulo era então lugarejo pobre e lamacento? Os irmãos Rendón de Quevedo, ambos genros de Amador Bueno da Ribeira, foram os cabecilhas do movimento que tinha por objetivo considerar dom João IV um traidor e, com a negativa dos paulistas em reconhecê-lo, aproveitar o tumulto para oferecer a coroa de um novo reino ao sogro, homem íntegro e que havia ocupado várias funções da república durante a vida, era um “homem bom” da terra, como se dizia à época. Pode-se dizer que o episódio é a teimosia espanhola, tão proverbial, em todo o seu esplendor. Com esse gesto, os dois Rendón de Quevedo pretendiam ganhar a simpatia da vila e anexar a Capitania de São Vicente (ao menos sua porção de serra-acima) aos domínios espanhóis na América. Uma pretensão e tanto.
Amador Bueno recusa essa coroa de festa infantil e, de espada em punho, acossado pela chusma inflamada pelos espanhóis, refugia-se no Mosteiro de São Bento até que os monges conseguissem dissuadir os revoltosos, o que levou, parece, dois dias. Com os ânimos apaziguados pelo deixa-disso dos religiosos, a vila de São Paulo teria aclamado dom João IV como Rei de Portugal em 3 de abril de 1641.
O fato dividiu os historiadores. Por ser o fim do mundo do império português e não ter, à época, a menor importância econômica, a reação dos potentados em arcos e dos espanhóis de São Paulo passou despercebida. O vulto que a história tomou a ponto de ser polêmica é o inchaço artificial promovido nos séculos vindouros, por Frei Gaspar da Madre de Deus, por Pedro Taques, pelo Visconde de Porto Seguro e pelo Visconde de Taunay. Para mim, a Aclamação aconteceu, mas foi movida pelo mesmo espírito que se apossou da Câmara de Aporá, na Bahia, que, em 2011, resolveu emendar a Constituição Federal, ou seja, os que insuflaram o movimento não tinham noção exata do que estavam fazendo, escolhendo a solução mais absurda possível.
A confusão é tão grande que não se tem certeza da data exata. Taunay diz que a Aclamação deu-se em 1º de abril de 1641; outros eruditos, mais prudentes, deduzem que ela pode ter ocorrido entre a segunda quinzena de março e 3 de abril de 1641.
Nos anos 30 do século XX, a história mal contada foi alvo de especulações filosóficas, numa época em que a pretensão de imparcialidade não havia contaminado a historiografia, e chegou a ser tema de, pelo menos, duas manifestações literárias (ou, pelo menos, com volições literárias). Não só o fato histórico jaz esquecido, mas também essas germinações literárias, o que não deixa de ser, nesse caso, um tipo torto de sorte. Romance histórico brasileiro costuma ser empolado sem necessidade, uma polenta encaroçada. As obras em questão são: Amador Bueno, o Rei de São Paulo, de Alfredo Ellis Jr., de 1936 ou 1937, a edição não traz a data e, não sei bem como, na época em que li o livro, a deduzi; e Amador Bueno - o Aclamado, de Aureliano Leite, os dois historiadores. Não consta que tenham segunda edição, o que mostra não terem sido sucesso de vendas. Os dois livros foram escritos após a Revolução Constitucionalista de 1932, o que lhes confere uma aura politizada e pode servir como indicador do clima político à época da instauração do Estado Novo.
As névoas do incerto pairam sobre a Aclamação; logo, quem se meter com o assunto pode muito bem pintá-lo com as suas próprias cores ideológicas para o leitor. O romance histórico, a depender da motivação, pode ser um esforço para a construção mítica de um povo, e é isso que ocorre nos romances em questão, mas de pontos de vista opostos.
As obras prévias de Ellis Jr., paulista, e de Leite, mineiro, dizem muito. Quando do lançamento dos livros que cada um dedicou à Aclamação, os dois já tinham experiência literária, embora a literatura não lhes fosse ocupação principal, para a nossa sorte. Ellis Jr. já se havia atrevido mais, tanto pela quantidade de obras (com o seu Amador chegava à sétima) quanto pela colaboração com Menotti del Picchia, nome ligado ao Modernismo, em O Tesouro de Cavendish, em 1928; li o livro sobre a Aclamação e esse sobre o pirata Cavendish, que invadiu Santos; ambos fracos. Leite, até aquele momento, com o seu livro sobre Amador Bueno, somava quatro obras literárias; li apenas esse livro de Leite, que me pareceu indigesto. Os dois são ufanistas à sua maneira; e ufanistas costumam escrever mal, costumam tropeçar nos montes de adjetivos e qualificativos desnecessários que lhes caem dos bolsos. Ninguém é somente mau: é vil, é pérfido, é soturno, é diabólico.
Ellis Jr. estava mais à frente também no quesito romance histórico; são assim considerados O Tesouro de Cavendish (1928), Jaraguá e O tigre ruivo, os dois últimos sem data, mas anteriores à publicação do livro sobre a Aclamação. Deduz-se a razão do seu Amador apenas com uma breve batida de olhos num título presente na relação de obras: Confederação ou Separação, posterior a 1932.
Leite tratava de questões várias. De suas obras até então, constam: Memórias de um Revolucionário, sobre a Revolução de 1930, com o cheiro pastoso de autobiografia ou relato em primeira pessoa; Martírio e Glória de São Paulo (1934), sobre a Revolução Constitucionalista; A Questão ortográfica e Língua brasileira? Não, língua portuguesa, discursos pronunciados na Câmara Federal em maio e 19 de setembro de 1935, respectivamente. Deixa-me receoso essa entrada nas questões ortográficas, embora boa parte da intelectualidade de então perdesse tempo com elas. De fato, Leite, em sua obra, usa uma ortografia puxada à reforma portuguesa de 1911, que antecipou boa parte das novidades do Formulário de 1943.
Porém, os ossos do pobre Amador Bueno, onde quer que estejam, soterrados sob o Convento de São Francisco ou para sempre perdidos aos elementos naturais, não conseguem repousar em paz. Interpretações díspares, com a reconstrução da realidade histórica pela orientação ideológica de cada autor. A ficção ultrapassa as próprias barreiras, num sentimento expansivo de valorização da pátria, como ocorreu com o romance histórico no século XIX. As obras estão contaminadas pelo maneirismo literário oitocentista; um excerto da introdução feita por Menotti del Picchia para O Tesouro de Cavendish deixa isso bem claro:
Aqui está um romance que eu quisera ter escrito. Tressua tão cândida e cavalheiresca bravura, que se liga à mais pura tradição romântica, com esses encantos episódicos que fazem a fortuna, a popularidade e a eternidade de uma narrativa. [...] a ingênua frescura que está nos romances de Paulo Setúbal, Viriato Corrêa e nesta obra de Alfredo Ellis. [...].
Tressua tanto que mil sabonetes não lhe tirariam a sovaqueira romântica. A escolha de palavras e o tom de encômio são enjoativos, como um doce que, de tão doce, empapuça a boca. Nunca li nada de Del Picchia, mas já fico ressabiado: ele escreve como quem confeita um bolo; o vocabulário fica entre o bafio do arcaísmo e a linguagem burocrática dos bacharéis em Direito que dominaram e necrosaram a nossa vida intelectual, em que toda obra séria tem jeito de peça de processo. Tão popular e eterna era a obra que não teve segunda edição.
De fato, a caracterização das personagens, os seus gestos e as suas ações são uma visão enfeitada do episódio, um teatro bufo, dentro do espírito desse romantismo retardatário, tanto de Ellis Jr. quanto de Leite. Os livros, logo se nota, não podem ser considerados modernistas; eles tresandam a século XIX, são extemporâneos: cistos românticos.
O Amador Bueno pintado por Ellis Jr. tem as cores desbotadas: a tibieza do protagonista é catastrófica para o futuro da Capitania de São Vicente. Há um capítulo quase todo em que Ellis Jr. dedica-se a desancar Bueno, como quem malha Judas.
Ele crescera às soltas nas terras da sesmaria. Isso, porém, não fazia influência sobre a índole do jovem paulista. Ainda que dotado de bom físico, com seu porte mediano, a sua agilidade nos exercícios, a sua rapidez na carreira, ou a sua força muscular, Amador não se fazia paralelamente um homem forte no concernente à mentalidade. Tímido, sem arrojo, menino prudente, comedido, não mostrava ambição nem esperteza nas reflexões. Preferia Amador os misteres que o sexo não estava habituado a verificar em jovens daquela idade. (p. 51)
Bueno, segundo Ellis Jr., nasceu predestinado a dar errado. Os trechos que se seguem servem para traçar os contornos de alguém que não prima por nada e está abaixo da média, desde a juventude:
Logo ao atravessar as fronteiras da infância para a juventude rumorosa, quando todos os seus parceiros de idade andavam em constantes tropelias a correr atrás de caçadas mais ou menos perigosas, ou em estridulosas cavalgadas, ou ainda em rixas barulhentas, Amador vivia apegado à saia da mãe, a boníssima matrona que era Maria Pires […]. (p. 51-52)
Com um gênio tão temperado de tibieza, Amador passava o tempo pelos cantos da casa de Patuaí, […]. Este [Bartolomeu, o pai] se desesperava em ver a tranquilidade do jovem Amador:
— Por quem teria puxado este menino! Logo o primogênito!
Bartholomeu pensara em o fazer clérigo.
— Ele não tem audácia, nem arrojo que se fazem mister em homens destinados a agir na América, onde tudo é largo. (p. 52)
Amador fizera-se homem sempre com essa psicologia timorata. Aos vinte anos já usava óculos, aos vinte e cinco era um pouco calvo e aos trinta já parecia ventrudo, dada a vida sedentária que levava. (p. 58)
As palavras que Ellis Jr. enfia na boca de Bartolomeu Bueno soam anacrônicas. Tenho as minhas dúvidas se um homem, na rudeza da São Paulo do século XVII, ia manifestar-se com esses ademanes afetados. Esse diálogo tem o mesmo gosto de imitação barata presente nas falas das personagens de A Guerra dos Mascates, de José de Alencar. Para a defesa de Alencar, ele estava contaminado com os maneirismos da sua época, quase um século antes, e tem obras que passaram pelo teste do tempo.
O intuito supremo, quase o único, de Ellis Jr. é mostrar u’a malformação de caráter de Bueno, sapateando-lhe sobre os ossos: modelo de homem omisso e mau cidadão. O destino de Amador está traçado: no final do livro, valendo-se da boca de Fernão de Camargo, o Jaguaretê, Ellis Jr. vocifera contra ele, que fez “fracassar o esforço feito em favor da liberdade de São Paulo”. A omissão de Amador é a ruína do germe da independência paulista; ele é preguiçoso, timorato, míope e obeso: a antítese do bandeirante.
Amador é excluído sistematicamente do número dos seus conterrâneos pelas suas qualificações. Inclusive, atribuem-se-lhe características judaizantes:
Mas Amador era avesso às cousas eclesiásticas. Não estudava o seu latim e andava sempre atrasado na sua cartilha, como nunca sabia o seu livro das Horas, que era a base para quem quisesse seguir a carreira sacerdotal.
[Bartolomeu, o pai] — Estou desanimado com esse menino! É um verdadeiro herege! Não acredita no catecismo e quer discutir a doutrina sagrada com o Rev. Padre Simão! Ele parece inclinado só para as coisas que podem dar lucro! Parece um judeu! Não se liga aos outros meninos da idade dele! Parece até que nele refluiu concentrado tudo o que temos de judeu! (p. 54-55)
Amador como um coágulo de sangue judeu joga luz sobre um fato: marcá-lo como estranho aos seus e pelo comportamento tímido e ávido estava em voga tanto no período narrativo do romance quanto no de publicação da obra.
Porém, o livro de Ellis Jr. chama atenção por algo, no mínimo, intrigante: as poucas aparições de Amador Bueno na obra. Ora, ele empresta seu nome ao título, mas a concepção do autor não permite a sua aparição mais do que julga necessário, ou seja, para tripudiá-lo. O romance tem 25 capítulos, que levam somente títulos. A figura de Amador aparece no quinto, como já citado mais atrás, e no último, o 25º, intitulado “A Aclamação”. Entre os dois explanações largas que tratarão das questões históricas que culminaram no episódio da Aclamação e na formação da alma planaltina, capítulos dedicados à geografia do Planalto, à derrota de Dom Sebastião e à União Ibérica, à presença de Cornélio de Arzão no Planalto, à questão da Confederação dos Tamoios, aos jesuítas — a sua expulsão em 1640, a sua república guaranítica e à investida bandeirante contra as reduções em território espanhol —, um capítulo sobre as reverberações das invasões holandesas no Nordeste e partes dedicadas às buscas metalíferas patrocinadas pela Coroa portuguesa. Cabe ainda na obra até mesmo uma história de amor envolvendo o filho de Amador Bueno e a refrega entre duas famílias rivais, cujo título do capítulo é Montecchios e Capuletos paulistas, para dar uns fumos shakespearianos. No fim das contas, há muito pouco Amador Bueno no livro.
A explicação está fora do romance. Em 1944, Ellis Jr. escreveu o ensaio A lenda da lealdade de Amador Bueno e a evolução da psicologia planaltina, no qual a concepção do autor sobre a Aclamação fica mais clara:
Como se poderia encarecer o gesto de Amador ao lado da diretriz traçada pela causa reinol? Ao se engrinaldar a lealdade de Amador Bueno, não estávamos nós a endeusar a causa do Reino, contra a mesma linha, mais tarde sustentada no campo da tragédia horrenda pelos massacrados no Capão da Traição ou pelos olindenses, na sua luta, contra os mascates reinóis, ou ainda, por Tiradentes, no alto da forca, onde foi arrastado pelos áulicos e apaniguados de D. Maria I, ou ainda pelos portugueses brandindo as garrafadas contra os crioulos, na famosa noite de que resultou a abdicação? (p. 12-13)
Esse texto, fora do domínio literário, ilumina o pensamento do autor: o protagonismo não é o gesto de Amador Bueno, desmerecido na sua pessoa e na sua atuação pública, mas sim a importância do fato.
O conceito de importância do fato é o determinante da obra. A Aclamação é a culminância do processo de formação da alma dos habitantes do Planalto frente a uma “ideologia” reinol. Taunay, segundo Ellis Jr., retrata já uma atmosfera de indiferença ao poder constituído em Portugal. A alma planaltina formou-se como contraponto à lusitana pelo isolamento da vila de São Paulo, no alto da Serra do Mar, o que fez com que os paulistas formassem uma república de per si, na qual Portugal e o Rei eram meras sombras no teatrinho de sombras das Ordenações, e por não haver, de início, nenhuma atividade econômica que despertasse o interesse da Metrópole.
Essa alma planaltina estava formada havia tempo. Em A lenda da Lealdade..., Ellis Jr. sugere-nos Amador Bueno como um indivíduo que deveria ser “bem assimilado pela terra em que vivia, na qual ele recebia todas as pressões que lhe modelavam o intelecto ou lhe tangiam as cordas sentimentais”, imbuído dessa alma do Planalto. Prossegue em relatos genealógicos: origem espanhola pela parte paterna, mas totalmente paulista por parte de mãe, de gente já há três, quatro gerações aclimatada na terra e tendo inclusive laços de sangue com os indígenas, notoriamente o cacique Piquerobi.
Em suma, Amador não teria por que ter apego às instituições portuguesas. É o ponto central do romance: Amador, na sua visão e pelos motivos que julga plausíveis, junta-se não aos mártires ou protomártires, mas àqueles que estão afinados com a causa reinol. No caso de Amador, um agravante: por conta da compleição físico-psicológica moldada por Ellis Jr., estar com os reinóis é apenas por uma questão de fraqueza, pois a sua estirpe e o seu meio deveriam orientá-lo a ser paulista. Na conta do autor, Amador não agiu como se esperava dele, não seguiu a inclinação da sua alma, foi contra a sua natureza e contra a república que lhe ofereceu uma coroa, projetando nele a imagem do homem bom da governança da terra, o herói que poderia conduzir um novo reino.
Ellis Jr. considera a visão romântica do episódio da Aclamação uma lenda criada pelos cronistas paulistas que dela trataram no século XVIII: Frei Gaspar da Madre de Deus e Pedro Taques.
O livro de Aureliano Leite sobre o tema, Amador Bueno - o Aclamado, começa com um prefácio. Nada demais, considerando que muitas obras começam com prefácios; não fosse o tom do texto: é uma justificativa. Vale-se do argumento de autoridade: começa fazendo referência à peça de teatro escrita por Francisco Adolfo de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro, em meados do século XIX, e cita Pedro Taques e Frei Gaspar, autores de Nobiliarquia Paulistana e Memória para a História da Capitania de São Vicente, nessa ordem, gente que Ellis Jr. considera meros fabuladores.
O prefácio de Leite deita-se num leito luxurioso de publicações; entre científicas, literárias e crônicas, perto de oitenta, além de citar outros autores só de passagem. Ao fim, há uma nota perniciosa, e deve ser por isso que foi impressa em letras miúdas:
Já estava este livro entregue às oficinas gráficas e todo composto, quando vim a saber da existência do volume recente do Sr. Alfredo Ellis Júnior, intitulado Amador Bueno — O Rei de São Paulo. Comprei-o e li-o. O vulto de Amador quase nada aparece nesse trabalho. Além disso, sofreu lastimável depreciação que procura tornar a grande figura colonial um indivíduo mofino e ridículo. Isto se opõe, como a noite ao dia, aos meus conceitos, que são aliás os comuns e bebem suas razões nas límpidas nascentes da história. (p. 18)
Será que só a nota final foi escrita após a descoberta do volume de Ellis Jr.? O prefácio todo quer blindar as escolhas narrativas de Leite e o seu enfoque favorável a Amador.
Segundando o prefácio, aparece muito Amador Bueno no decorrer da narrativa: é com base nele que se constrói a trama maior. Não se trata mais o anti-herói ellisano, mas uma nova concepção: o homem político sábio, virtuoso, o homem grave, que pesa e mede atos e as suas consequências. Nos dezoito capítulos do livro, Amador é a figura central. É mais que isso: um bastião moral, um líder nato e justo.
A construção da personalidade é muito clara; logo no primeiro capítulo, depois de uma consideração histórica breve e das condições da paisagem, vem a compilação, também breve, do esforço do povo paulista naquelas terras indômitas e dos seus maiores, entre os quais estão Antônio Raposo Tavares, João Pedroso de Moraes, Baltazar da Borba Gato. Mas, dentre todos, destaca-se Amador:
Todavia, ninguém, nenhum dos vultos mencionados há pouco, ou por citar, gozara, na vila de S. Paulo, porque não dizer na própria capitania? mais mesmo que o capitão-mor-loco-tenente, do prestígio individual de Amador Bueno. (p. 35)
Com exceção do segundo capítulo, o tempo da narrativa vai da expulsão dos Jesuítas de São Paulo, em 1640, à aclamação de D. João IV como Rei de Portugal, concentrando-se em narrar os feitos de Amador como homem bom da vila e a sua magnanimidade.
Ainda no segundo capítulo há um trecho sobre a bandeira de 1628-1629, que arrasou a província do Guairá. Cita-se aí a ação dos padres jesuítas Simón Maceta e Justo Mancilla, que “colando-se à cauda de parte da expedição”, chegaram a São Paulo. Os religiosos, vendo que ali faziam ouvidos moucos aos seus protestos, foram para Salvador, sede do Governo-Geral, e de lá voltaram com um juiz. De novo em São Paulo, tiveram de recolher-se, ameaçados pela população, que ia à janela da casa onde se encontravam, vociferando e disparando tiros de arcabuz. Os jesuítas precisaram sair da vila escondidos, mas “se aqueles pobres fugitivos soubessem do esforço de Amador Bueno lhes poupar maiores vexames!”. Amador mostra-se religioso, “temente a Deus e respeitador, um tanto fetichista dos sacerdotes da Igreja Católica Apostólica Romana […]”. Talvez seja essa a única crítica de Leite a Amador.
É contra sua vontade, mas pelo bem da república, que o bom homem assina a expulsão dos jesuítas, cena teatral no livro de Leite. Mesmo na confusão que se instala dentro da Câmara nesse momento crucial, Amador consegue chamar todos à calma e à reflexão. Leite preocupa-se mais uma vez aqui em blindar o seu Amador. A ata da Câmara da vila de São Paulo é transcrita, inclusive os seus signatários. Leite é o escrivão da verdade.
Amador é ponderado, a “figura mais opulenta e prestigiosa da capitania”, respeitoso à lei e à religião. Tem todas as características de um Salomão; inclusive o retrato putativo que lhe faz Belmonte, em 1939, concede-lhe a barba branca tão digna. No capítulo que trata da sua aclamação como rei, mas que o próprio personagem reverte para dom João IV, “discursou como um autêntico rei, para vassalos respeitosos”. Leite preocupa-se em legitimar a postura de Amador Bueno, ou seja, o seu ato sábio em ter negado a coroa ofertada, mas, por outro lado, não lhe tira os méritos, mostrando-o digno de recebê-la.
Se o propósito de Ellis Jr. é a importância do fato (da Aclamação de Amador) como ápice do processo, o de Leite é a glorificação de Amador como trilho para temas correlatos. Um deles é a ideia de unidade da capitania com o resto do Brasil, numa insinuação precoce de unidade nacional. O tema aparece durante o livro todo e pode-se dizer que é está personificado na figura de dom Deodato de Albuquerque, rebento de uma família fidalga de Pernambuco que pede a mão de dona Mariana, filha de Amador.
Leite advoga sempre a união de São Paulo com o resto da colônia, coisa que em Ellis Jr. inexiste, claro. Ao contrário, o paulista chega a falar na falta de identidade da capitania com a América Portuguesa.
No trecho em que Amador é buscado na sua fazenda para voltar à vila — havia saído de uma reunião que deliberou por quebrar os laços com Portugal, estratagema dos irmãos Rendón de Quevedo —, ele declara, solene:
Se em verdade, meu pai e meu avô nasceram na Espanha, do Brasil sou filho, tenho também em minhas veias o “sal da terra” […]. (p. 171-172)
Enquanto Ellis Jr. põe a Aclamação como ápice do processo e culpa o próprio Amador pela sua inaptidão, Leite glorifica-o como o protomártir que, pela sua decisão sábia, soube manter a unidade do que viria a ser o Brasil. Unidade que se manteve pela fidelidade de Amador à casa de Bragança, do novo rei dom João IV. E mais: na visão de Leite, a brasilidade só pôde ser formada por esse ato inicial de lusitanidade. Lenda ou verdade, o príncipe dom Pedro de Bragança, tetraneto de dom João IV, será grato, por escrito, ao gesto de Amador, quase duzentos anos depois.
A conclusão de Leite é simples: se Amador tivesse aceitado a coroa ofertada, o novo reino seria um fantoche na mão da Espanha ou, pior, incorporado à América espanhola. Ou seja, graças à lealdade de Amador Bueno à Coroa portuguesa, o Brasil manteve-se unido. O Amador de Leite faz eco a Frei Gaspar, que escreveu em 1797:
Fomentavam [os espanhóis] ao mesmo tempo a vaidade dos ouvintes, exagerando o merecimento dos paulistas, e europeus principais, e dizendo, que as suas qualidades pessoais, e nobreza hereditária os habilitavam para outros maiores impérios.
O Amador de Leite tem de ser por Portugal, porque o Brasil de então ainda é Portugal; a mensagem é clara: naquele então existe uma incompletude da alma nacional, mas que haverá uma hora certa, dando a Amador ares de profeta.
Não queiramos forçar, não, a época em que um dia nos haverá-de chegar. […] E então esperemos, andemos devagar, para subir ao pináculo, sem riscos nem fadigas. Algum dia, quando o Deus dos profetas marcar no livro dos destinos, teremos um rei ou título maior, se maior houver na terra! (p. 213-214)
As visões de Ellis Jr. e Leite sobre Amador Bueno são opostas e têm por base as convicções de cada um. Trata-se, para ambos, sem dúvida, o primeiro dos chamados movimentos nativistas, mas os homens de letras divergem nas motivações e nos resultados.
Para Leite, o movimento era nocivo e interesseiro, fomentado pelos espanhóis de São Paulo; para Ellis Jr., uma oportunidade perdida da manifestação da alma planaltina já formada. Amador igualmente: o homem grave de Leite, ponderado, de ares reais, justo, transmuta-se em um sujeito amesquinhado na pena de Ellis Jr., a quem ele atribui o fracasso do esforço primeiro da nacionalidade. E a Metrópole, tida algo totalmente alheio por Ellis Jr., escorado em Taunay, em Leite, Portugal é visto como um corpo único com as suas colônias: Amador é por dom João IV porque esse rei é Portugal, e Portugal ainda é sinônimo de Brasil, um lusismo imanente ao autor, o que fica explícito na questão ortográfica.
Apenas para dar fim ao assunto, existe ainda um terceiro romance sobre a Aclamação, mas bem delirante, como se fosse possível delirar mais, de um uruguaio, Enrique Rodríguez Fabregat: Amador Bueno: El hombre que no quiso ser rey. A obra é dos anos 40 e usa o acontecimento como defesa para o battlismo, doutrina política particular da Cisplatina, criada pelo ex-presidente José Batlle y Ordóñez, que lhe dá também o nome. Como todo ismo derivado de nome próprio, o batllismo parece um mamão murcho, algo que já nasce caduco. Rodríguez bebeu da fonte de Ellis Jr., tanto que a edição do livro do uruguaio que tenho em casa está toda anotada por Nilo Garcia, historiador que também se debruçou sobre o tema da Aclamação, tendo publicado o seu trabalho em meados dos anos 50. As anotações chegam a ser divertidas, do tipo: “Ellis Júnior!”, “Muito Ellis” ou “Está contaminado por Ellis”, depois de um trecho grifado.
Cada três parágrafos, Rodríguez usa qualquer pretexto na narrativa para lembrar-se de Batlle e do batllismo, dizendo como essa “aurora dos povos da América” é um prenúncio das ideias de Batlle. Balle, como diriam os italianos.
Ótimo! Eu já não me lembrava deste episódio da história colonial! Obrigado!