Cinzeiro de Latão 30
O manto da discórdia / Deu no New York Times? / Na bala / Bitucas / Laçando bois
Cinzeiro 30, 20 de julho de 2024.
O manto da discórdia
Leio que o Museu Nacional da Dinamarca devolveu ao Brasil, ao Museu Nacional do Rio de Janeiro, um manto tupinambá, feito de penas de guará, ave que lembra a garça, mas de plumagem vermelha. O manto devolvido estava no país nórdico desde o final do século XVII.
Esse devolveu não parece bom. É uma pena. Quando o manto saiu daqui (de lá, dali etc.), não havia Brasil independente e muito menos o flamejante Museu Nacional. Trouxe é mais adequado, porque não dá para devolver ao proprietário original, de quem o manto foi tirado. Tirado também é excessivo: os índios devem tê-lo trocado por uma panela ou dado de presente. Esse negócio de devolução de artefatos não passa de miudeza do politicamente correto, mas que gera muita grita.
Um ser orelhudo, na poça de água parada que é o Xwitter, disse que a devolução foi de “colonizador para colonizador”, porque o manto não foi devolvido aos tupinambás; logo, somos colonizadores também. Não há Everest que esconda o ridículo dessa afirmação. Em outra edição desta newsletter, escrevi sobre o Museu Britânico e os artefatos “roubados”: se estivessem nas mãos dos povos que os fizeram, não existiriam mais. Se esse manto de penas tivesse ficado com os tupinambás, sem dúvida não existiria mais, teria sido tragado pelo tempo. Ele esta aí apenas porque os dinamarqueses o conservaram. Se o manto tivesse sobrevivido até século XX na mão dos silvícolas, teria sido trocado por pinga ou por calções da Adidas, a folha de parreira do nosso índio funaizado.
O diretor do Museu Nacional comemorou o retorno do manto com uma série de tuítes que tinham o esmegma característico do politicamente correto. Desdenho da comemoração: teria continuado melhor em Copenhague. A presença do manto lá não é uma oportunidade para que o dinamarquês possa ver algo do Brasil sem ter que vir ao Brasil? Não é algo que faria propaganda do país lá fora? Se não me falha a memória, há peças egípcias e gregas no acervo do Masp, fora toda a coleção de arte europeia. Se a moda pegar mesmo e os países começarem a reivindicar as obras que consideram suas, perderemos o pouco de fora que há para ver por aqui. Aliás, o próprio Museu Histórico do Rio tinha uma múmia egípcia no seu acervo. As autoridades brasileiras estariam dispostas a devolvê-la ao Egito? País que, aliás, vive esmolando essas devoluções ao Museu Britânico. De qualquer jeito, agora é impossível: a múmia que estava no Museu Nacional e havia pertencido a Pedro I, lembremos, foi fumada pelo descaso.
Deu no New York Times?
É o subtítulo de um filme razoavelmente engraçado, dos anos 80, dirigido pelo Henfil, que retrata um país fictício chamado Tanga, uma ditadura no entrebandas do mundo, e as forças que o querem desestabilizar. O ditador é um nazistoide que recebe todos os dias um exemplar de The New York Times, o lê, sentado num vaso sanitário que toca Wagner, e o bota numa fornalha. A oposição, não menos ridícula, são revolucionários caricatos que, de dentro de um bunker, tentam ler as manchetes do jornal na fumaça que escapa do palácio presidencial. Mas, no fundo, a revolução não lhes interessa: querem o exemplar do diário nova-iorquino, que é uma espécie de oráculo. Tudo o que é impresso em Nova York acaba acontecendo em Tanga. Todos querem pôr a mão no jornal. O jornal é o poder.
A ideia de Henfil era satirizar a política brasileira naquela transição bananosa entre o regime militar e a democracia manca que hoje está aí, porém, Tanga (Deu no New York Times?) mostra bem o que é a pretensiosa intelectualidade do Brasil: um coio de ressentidos e indigentes mentais presos num bunker.
Ironicamente, o mesmo New York Times publicou na última semana uma lista dos cem melhores livros no que corre do século. Não há nenhum brasileiro entre eles, e isso criou celeuminha nas redes sociais: se retorceram e lanharam a cara vários perfis, alguns com dezenas de milhares de seguidores, dizendo que o “mundo está míope” de não ter visto uma obra brasileira que fosse digna de estar na lista e que quase todos os títulos são do mundo anglófono.
Bem, o jornal é americano e consultou quinhentos especialistas (?) para elaborar a lista. O chilique mostra bem duas coisas: mesmo a turma que se quer descolonizada continua alugando um quartinho na cabeça, que é um grande cortiço, para o grande irmão do norte. Um jornal americano, voltado para o público americano e que chama especialistas quase todos americanos vai gerar, claro, uma lista moldada ao gosto daquela cultura. Uma blogueira apontou a “insensatez” de que na lista não figuravam Torto Arado ou Budapeste, “títulos memoráveis”. Memoráveis como crise de cólica renal.
Para início de conversa, lista é coisa de quando se vai ao mercado. Jornalismo de lista é patacoada. Crítica literária é algo; ruim, mas algo. Lista é baboseira, é coisa de adolescente entediado. E não sei por que se importam tanto com a opinião de um jornal que consideram a trombeta do Apocalipse e com uma cultura que dizem detestar. Era muito mais fácil ignorar: os americanos continuam com as listas inúteis, e nós continuamos a fingir que qualquer tolete com letras é um “título memorável”. Todos ganham. Win-win.
Se deu no New York Times, acontece.
Na bala
No último sábado, dispararam contra Donald Trump, candidato (ou seria ainda presidenciável?) à presidência dos EUA, acertando-lhe a orelha. Um golpe de sorte: rendeu apenas um cosplay involuntário e espelhado de Van Gogh. Lembrei-me de outros casos na própria história americana, de presidentes, já eleitos, vítimas mortais de atentados: Lincoln, em 1865; James Garfield, em 1881; William MacKinley, em 1901, e John Kennedy, em 1963. Reagan quase foi morto num atentado, em 1981. De qualquer modo, foram quatro mandatários no exercício das funções. E esses quatro nomes foram muito martelados no decorrer da semana.
Dois candidatos à presidência ganharam agrados de chumbo de malucos e opositores: Bobby Kennedy, irmão mais novo de John, em 1968, que morreu, e George Wallace, em 1972, que sobreviveu ao atentado, mas ficou paralítico.
No Bananão houve uma tentativa de magnícidio; na verdade, uma e meia. Prudente de Morais, em 1897, recebia os militares que tinham voltado de Canudos, quando um dos soldados tentou atirar no presidente. Falhada a arma, uma garrucha, sacou um punhal. O ministro da Guerra, o marechal Bittencourt, se interpôs: recebeu os golpes e morreu. A meia tentativa foi um doidão que sequestrou um avião da Vasp, no final de 1988, para jogá-lo na cabeça do Sarney, mas não conseguiu, para a sorte de Sarney e de quem estava no avião. O acontecimento rendeu, inclusive, um filme mais ou menos recente; a meia tragédia foi evitada pelo piloto.
Quanto a candidatos à presidência, temos o exemplo da facada em Bolsonaro. Não me lembro de outro. Houve os tiros contra Lacerda, o assassinato de João Pessoa e os disparos de Arnon de Mello dentro do Senado, mas eles não eram presidentes da República ou candidatos.
Voltando aos States, é curioso que tantos disparos tenham ocorrido no berço da democracia moderna, mas daí se tiram duas constatações. A primeira é que a democracia não é regime de consenso; parece óbvio, mas não é. Na democracia sempre haverá os preteridos, que podem se radicalizar, acusar a própria democracia de ser burguesa ou excessivamente permissiva. O regime democrático tem mais a ver com um cabo de guerra do que a imagem de liberdade e diálogo que se tenta passar. A liberdade de um é a gaiolinha do outro, e isso é inevitável. A segunda constatação é que existe uma tendência à tirania; o sentimento de “estar do lado certo” autoriza alguns indivíduos a bancar os justiceiros, pois se sentem injustiçados.
A ideia do malucão que age sozinho é meia verdade. Muitos dos exemplos citados antes agiram sozinhos e eram tresloucados frustrados, mas é o meio que lhes apodrece o cérebro: são frutos da política fermentada pelo sectarismo. Não são lobos solitários: são excrescências de um sistema em que não se veem representados. Mas se todo aquele que se sentir excluído pegar pistola ou faca e tentar “arrumar” o sistema, estamos fritos, na melhor das hipóteses. É a gênese do terrorismo. É uma solução tirânica, em que a situação de incômodo, às vezes ampla, se condensa em um elemento já meio pirado.
A tirania é colocar-se acima da decisão das urnas e partir para as cabeças. Isso, por exemplo, deu início à Guerra Civil Espanhola. Por outro lado, aceitar o resultado das urnas deu origem ao Terceiro Reich. O bigodinho chegou ao poder em eleições democráticas, inclusive com uma constituição considerada então modelar. E não há apenas terras viciosas, mas urnas também, como as que deram 99% dos votos para Saddam ou para a dinastia Kim. Voto não é sinônimo de democracia.
O erro é a cristalização da visão da democracia como uma virtude em si, como regime ideal, sem imperfeições. Quando acontece algo como o tiro em Trump, levanta-se uma grita histérica, não sem razão, mas ninguém se preocupa, no baixar da poeira, em investigar as causas mais profundas do incidente. Parece que, pego o culpado, tendo ele nome e rosto, o resto não interessa. Polarizar a opinião pública em torno de um fato é mais importante do que expor ideias ou governar. É a parte ruim da democracia, o lado podre.
Aceitar as imperfeições da democracia, criação humana e, logo, falível, tentando entendê-las, e isso por todos os envolvidos, seria mais útil do que o estudo de teóricos e o apego desmesurado a teorias políticas ou a ídolos. Política, ao fim e ao cabo, é mais prática que teoria.
Bitucas
Agalmatofilia. Você morre e não sabe de tudo.
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A hipersexualização é a sindicalização do desejo sexual.
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Tarsila do Amaral, em transe, pintou o Abaporu. O bicho do pé descomunal está debaixo da colina da Penha. Um dia, ele vai acordar e vai arrebentar São Paulo inteira, sapateando sobre tudo.
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Vi, na Globo News, um senhor muito bem alimentado, de rosto redondo e brilhoso, defendendo o aumento do imposto sobre os combustíveis, dizendo que apenas quem se preocupa com isso é a classe média, que tem carro. Deduzo duas coisas: a primeira é que o serralheiro pinguço aqui do bairro, que tem uma Belina toda podre para transportar os seus cacarecos, é classe média. Que classe média espantosa, que, suja, remendada e com as mãos queimadas de solda, empurra um carro que não tem mais cor predominante e sequer documentos. A segunda é que a comida chega à mesa desse senhor tão educado e tão culto por obra e mérito da telecinese. Nada de caminhões ou trens: apenas a força da mente. Nós, que usamos o carro para ir ao clube de golfe ou para comprar uísque, devemos pagar mais impostos sobre os combustíveis.
Outro senhor, de barba grisalha e bem alinhado, diz que os memes que têm por alvo o ministro Haddad são “muito bem feitos” e que “certamente são financiados”. Memes claramente feitos no Paint; alguns de uma porquice indisfarçável. Pergunto-me se o homem de cãs não muito veneráveis foi congelado nos anos 70 e apenas agora o tiraram do freezer, ou se é deliberadamente mau caráter, característica que tenta ocultar com um verniz de burrice, uma burrice atroz. Se bem que burrice e mau-caratismo quase sempre andam juntos.
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“Ulisses ou você lê na prisão, ou não lê.”
A frase lapidar é do Sérgio Jaguaribe, o Jaguar, que, contra todas as previsões, segue vivo. A entrevista, de 2014, você pode lê-la aqui.
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Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu, e Ursula von der Leyen, presidente reeleita da Comissão Europeia, são indistinguíveis aos meus olhos míopes. Quiçá sejam a mesma pessoa. São velhas empoderadas que não tingem o cabelo, talvez uma resposta às adolescentes que pintam o cabelo de azul.
Laçando bois
Ao contrário do Ivan Lessa — para quem o dinheiro brasileiro sempre trazia índios copulando com bichos silvestres, uma mentira divertida, mas sinal claro do desprezo que ele, não sem razão, nutria por algo que não valia nada —, sempre prestei muita atenção às nossas cédulas e moedas.
Estava eu em casa, há alguns anos, pensando com os meus botões. Tinha montado dois quadros com cédulas brasileiras repetidas da minha coleção. Em um deles, doze cédulas dos anos 1950 e 1960, daquelas feitas pela Thomas de La Rue e pela ABNC e que tinham um ar de dólar festivo; no outro, mais doze, que cobriam o período de 1981 a 2002. Neste último coloquei a famosa cédula do gaúcho, de 5 mil cruzeiros reais, emitida em 1993. As duas últimas emissões desse padrão, os valores de 5 mil e 50 mil — além da de 10 mil, da rendeira, concebida, mas nunca emitida — me atraem por conta da estética diferente: além da representação de “protótipos” populares — o gaúcho e a baiana, algo que me lembra vagamente as emissões iugoslavas de 1950 a 1989 —, havia nelas um prenúncio da primeira série do real, que é o verso “deitado”, ou seja, o eixo vertical da imagem alinhado com o horizontal da cédula.
No caso do meu quadro, deixei a cédula de 5 mil cruzeiros reais mostrando o verso, que tem um gaúcho a cavalo prestes a laçar um boi. Penso o que aconteceria se uma cédula com essa imagem fosse lançada hoje, a repercussão negativa que traria, a grita generalizada. À época do lançamento, eu tinha onze anos; o assunto sempre me atraiu, pois coleciono desde os seis anos, e, mesmo que a cédula em questão tenha demorado em chegar à minha mão — na verdade, como ela foi lançada meses antes do Plano Real, vi realmente poucas —, não me lembro de nenhum comentário que a desqualificasse pela arte do verso. Talvez pelo fato de o dinheiro perder valor continuamente, as pessoas não tivessem tempo de reparar muito no que tinham nas mãos. Cada dia que o dinheiro ficava na sua carteira sem ser transformado em comida, ele se desvalorizava.
Isso me veio à mente após o exame fugaz do exemplar no quadro de casa e da questão da nova — já não tão nova assim — cédula inglesa de 5 libras que traz o retrato de Winston Churchill. Militantes veganos estavam boicotando os fives porque na composição do polímero da cédula há uma substância de origem animal. Nem se tratava de quem a cédula trazia representado, o grande primeiro-ministro do período da Segunda Guerra Mundial, mas uma substância presente no suporte da cédula.
Imagine agora se uma cédula brasileira com a temática do gaúcho, como os 5 mil cruzeiros reais, fosse lançada hoje, os chiliques a que estaríamos sujeitos nas redes sociais, as síncopes, os protestos, os abaixo-assinados motivados pela figura de um gaúcho laçando um boi.
Esse tipo de hipersensibilidade fez com que os países pusessem em circulação cédulas inócuas e sem graça, como o nosso real, o euro e outras mundo afora. Se a ditadura dos ofendidos não existe, eu não saberia explicar o porquê de o papel-moeda parecer dinheirinho do Banco Imobiliário ou do Jogo da Vida. Morto, sem graça, representativo de nada.
Realmente, listas usadas para coisas não práticas são só uma perda de tempo. Eu posso fazer uma lista dos meus filmes favoritos, por exemplo, e isso só será interessante pra mim mesmo.