Cinzeiro de Latão 38
Histórias de prédios desconhecidos / Bitucas / Circo / O último sonho
Cinzeiro 38, 14 de setembro de 2024.
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Histórias de prédios desconhecidos
Sempre que entro em ambientes novos, reparo mais na forma que eles têm do que naquilo que eles contêm; objetos são sempre secundários. Guardo silêncio e vejo os pedreiros levantando as paredes enquanto trocam impressões da última rodada do campeonato com um cigarro barato no canto dos lábios; vejo os pintores com os seus chapéus de jornal, ouvindo rádio enquanto trabalham. Por fim, chega o marceneiro, sem dois dentes da frente, que vem pôr os rodapés. Somente depois vêm os entregadores e os montadores de móveis, isso na época em que a montagem do móvel era procedimento obrigatório por parte da loja. É a última parte.
* * *
Trabalhei em alguns lugares, mas o prédio que mais me marcou foi o que ocupava a empresa que me deu o primeiro emprego. Para ser mais fiel à memória, o meu primeiro emprego esteve em dois lugares. Quando fiz a entrevista (cabe dizer que essa entrevista foi uma das duas na iniciativa privada em que fui aprovado, talvez por inaptidão do entrevistador), a empresa ocupava um prédio térreo e estreito na Zona Leste de São Paulo, com um pátio grande que era usado como estacionamento; tão grande que um helicóptero pousaria ali sem dificuldade. O prédio tinha ar de coisa provisória, como aqueles dormitórios que algumas obras mantêm dentro dos canteiros. Terminada a entrevista, o meu futuro chefe me informou que a empresa estava de mudança para Santo Amaro e perguntou se isso era problema para mim. Quem precisa de emprego, ou de estágio curricular obrigatório, como era o meu caso, que estava terminando o ensino técnico, não tem muitas restrições. Foram quinze dias contados nesse galpão. Eu ia trabalhar a pé, uma caminhada de 25 minutos. Nunca mais trabalhei tão perto de casa.
É do segundo prédio que quero falar, o prédio em Santo Amaro, que, na verdade, estava perdido nas travessas do começo da avenida Cupecê. Trabalhei ali por quase dois anos. Para se ter uma ideia, eram dois prédios, um tipo de condomínio empresarial pobretão; a empresa ocupava um e metade do outro. O meio prédio foi o que recebeu os escritórios da empresa. A outra metade, nos meses que antecediam a Páscoa, uma fábrica de chocolate ordinário a alugava e, na hora do almoço, víamos as moças com os cabelos presos em toucas tomando sol na calçada em frente. O segundo prédio, separado dos escritórios por um corredor interno, era somente um galpão de pé-direito alto, usado como garagem e que os pombos usavam também como dormitório e banheiro. Dezenas deles, que deixavam um rastro esbranquiçado de excremento no chão coberto de brita, como se fosse a sombra da trave em que viviam arrulhando.
Os prédios tinham sido terminados havia pouco. Terminados, na verdade, é força de expressão: tinham sido entregues para o uso, e o aspecto imperfeito de tudo neles denunciava a pressa da conclusão e a má qualidade da mão de obra. Rebarbas, desníveis, juntas imensas pelas quais passavam dois dedos; tudo em magníficas vigas pré-moldadas e paredes de bloco aparente pintadas de látex vagabundo por dentro e caiadas por fora. Penso que o proprietário somente não caiou o prédio por dentro porque, onde quer que encostássemos, ficaríamos brancos de cal. Houve algum escrúpulo por parte do locador.
No primeiro dia no novo endereço, os móveis já estavam no lugar. A mudança tinha sido feita no final de semana. O deslocado era eu, que tinha demorado duas horas entre ônibus, metrô e outro ônibus. O combo do proletário urbano estava completo: eu tinha entrado na vida adulta da classe média baixa. A displicência no acabamento me permitia ver quem tinha feito o prédio: gente contratada às pressas e que fez o serviço às pressas. Nunca fui muito detalhista, mas há coisas que mesmo Édipo deixando Tebas perceberia. As divisórias todas tinham jogo, assim como os espelhos dos interruptores estavam bambos. Aliás, toda a fiação – elétrica e de rede – corria por canos metálicos externos e por canaletas.
O chão era todo especial: ondulações por toda parte e nos lugares mais inusitados. Com o passar dos dias, todos os funcionários já tinham mapeado os pontos críticos para evitar os tropeções. Isso porque era o chão todo revestido de forração cinza, aquele quase-carpete. Tudo: salas e corredores; só os banheiros escapavam: tinham um piso cujo aspecto de sujo nada tirava. Depois de alguns meses, rasgos grandes começaram a aparecer pela forração aqui e ali, deixando ver o contrapiso sem-vergonha que havia sobre as lajes. Claro, era um edifício de térreo e mais dois andares. Um pombal horroroso.
A empresa, cheia de gente quando entrei, começou a minguar; foi mandando funcionários embora em levas. Por fim, fechou as portas e entregou o prédio ao senhorio: quatro anos de funcionamento. Dois meses depois, a metade do prédio que dava para os fundos ruiu, abriu como uma caixa de sapato velha. Não vi, mas eu tinha colegas que moravam lá perto e com os quais mantive contato durante algum tempo, o suficiente para que o prédio ruísse antes das relações profissionais que me ligavam àquelas pessoas também se desfizessem. O primeiro prédio, o da Zona Leste, virou depósito de papel higiênico, milhares de fardos chegavam de caminhão, eu mesmo vi. A agência do Bradesco em que eu tinha conta era umas duas quadras dali.
O prédio “quase em Santo Amaro” foi reformado, mas, depois de uns anos, acabou demolido. Ele tinha erros insanáveis de construção. No terreno construíram um conjuntinho de apartamentos minúsculos e sem elevador, como me mostra o Google Maps.
Bitucas
O meu filho mais velho, esta semana:
—Você sabe como se chama o k super-herói?
— O que é “cá”?
— A letra.
— Ah. Não, não sei como se chama.
— K Lendário.
Não sei se estou criando bem, mas está saindo à minha imagem e semelhança.
* * *
O protozoário que tira o sarro dos coleguinhas unicelulares é um protozoeiro.
* * *
Estou preocupado. Cortaram o gás do meu prédio e o meu Spotify não reproduz o som. Será que o Xerxes de Brasília está por trás de tais proibições?
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Vendo a alta troposférica de Pablo Marçal entendo, definitivamente, que o eleitorado é microcéfalo e apedeuta. A democracia é um fracasso. Um fracasso gostoso e confortável, mas é um fracasso.
Circo
Quando eu tinha uns seis anos, montaram um circo perto de casa. Circo, para mim, até então, era só na tevê ou de passar perto, como os que montavam na Radial Leste, entre as estações Tatuapé e Belém do metrô, perto da Salim Farah Maluf: eram grandes, coloridos e cheios de lampadinhas destacando a silhueta da lona contra o céu escuro de um Tatuapé que ainda não era uma muralha de prédios. O circo montado perto de casa era mofino perto dos que se alternavam na Radial. É claro que enchi a paciência do meu pai até o convencer a me levar ao circo. O meu pai, coitado, acreditando cumprir com algo que acreditava ser função paterna, cedeu. Em quinze minutos de espetáculo eu já estava pedindo para sair, mas o meu pai, muito pedagógico, disse que tinha pagado o ingresso para a duração toda do espetáculo e que íamos ficar até o final. Hoje, quase quarenta anos depois, acho justo: eu faria igual com os meus filhos. A noção de tempo das crianças é irritantemente insondável; a tendência delas ao movimento tende ao infinito.
O carro de som do circo tinha arrebentado com o sossego do bairro nos dias anteriores. Eu o conseguia ouvir da escola, de casa, andando pela rua; parecia que ele me perseguia. O carro, além de azucrinar com a paz da vizinhança, anunciou a presença, nas funções de sábado, do palhaço Bozo, que então apresentava um programa infantil no SBT. A presença do Bozo me atiçou. Não sei por que fiz tanta questão de ir ao circo o ver; eu nunca tinha ligado muito para ele. O meu foco na tevê sempre foram os desenhos animados. Os apresentadores dos programas, fossem a Xuxa ou o Bozo, eram apenas um intervalo enfadonho entre os desenhos.
O Bozo apareceu enquanto estávamos eu e o meu pai no circo. Cumprimentou a plateia, fez umas palhaçadas tímidas e desapareceu, como se estivesse fugindo da polícia, o que, em se tratando do Bozo, não era totalmente impossível. Imagine: o Bozo preso durante um espetáculo de circo. A aparição do palhaço não deve ter durado mais de seis ou sete minutos. Até o meu pai, que o detestava, se confessou decepcionado. Se bem que, hoje, não sei o que se poderia esperar mais de um palhaço de circo. Foi uma apresentação compacta, com tudo o que um palhaço faz.
A ida ao circo deve ter sido a primeira vez que me deparei com um cenário de precariedade absoluta. O aspecto não ajudava: tudo era meio sujo, ensebado; a lona era pequena e tudo foi montado num terreno não muito grande, onde, depois, foi erguida uma delegacia de polícia de vigas pré-moldadas. Tudo no circo era de uma decadência filha bastarda do desleixo e da precariedade. A arquibancada era de tábuas mal aparelhadas, que deixavam farpas na roupa e nas mãos. A lona, de tantos furos, deixava passar a luz do sol e ficava com o aspecto até bonito de um céu estrelado. A roupa dos palhaços, dos acrobatas e dos figurantes era toda remendada e puída. Quando o Bozo entrou, de fantasia brilhante, aquela gente toda parecia um ajuntamento de mendigos. Veja: é uma criança de seis anos que pôs reparo; imagine o que um adulto não diria. Se bem que o meu pai guardou silêncio.
Os circos ainda tinham animais naquele tempo; o meu circo terceiro-mundista tinha cavalos e um elefante sujo e triste. Não havia leão; eu me lembraria de um leão, por mais requenguela que ele fosse. Não há como não se lembrar de um leão. Os cavalos eram lamentáveis: dava para contar as costelas da parelha de equinos que dava voltas no picadeiro enquanto um acrobata, ou algo do tipo, apoiava cada pé em cada cavalo.
O circo também tinha um globo da morte. Um fulano macilento numa CG 125 rodava dentro da esfera que parecia feita de ripas; ela lembrava a gaiola das bolinhas de bingo. O barulho era medonho, como uma colmeia raivosa.
Uma coisa eu tirei de tudo isso: nunca mais fui ao circo.
O último sonho
Si el sueño fuera (como dicen) una
tregua, un puro reposo de la mente,
¿por qué, si te despiertan bruscamente,
sientes que te han robado una fortuna?
(“Sueño”, Jorge Luis Borges)
Skízi era membro de uma tribo germânica, pouco importa qual, que iria perder a vida na Batalha da Floresta de Teutoburgo, quando três legiões romanas foram esmagadas na emboscada planejada por um germano romanizado.
Na noite anterior ao embate, Skízi dormia com seus companheiros perto das brasas de uma fogueira apagada, visto que já era outono. Não muito perto, pois ele, que tinha por volta dos dezoito anos, sofria de um problema severo de flatulência. Enquanto quase todo o acampamento velava ou lutava com o sono agitado, o jovem germano dormia um sono de chumbo.
No meio da massa confusa de sonhos, Skízi via formas vermelhas e amarelas, que lhe lembravam os romanos, mas eram diferentes, sem tantos detalhes e sem águias: um estandarte imenso, que poderia ser carregado apenas por um gigante, representando a silhueta de dois montes amarelos. Ele se via com roupas bonitas e coloridas, e, com ele, outras pessoas vestiam a mesma roupa e lhe falavam numa língua estranha. E havia comida, muita comida, mas de um tipo desconhecido; a comida ia de um lado a outro, e os de roupa igual, incluindo ele próprio, punham-na em caixinhas e em sacos estranhos e passavam-na para outras pessoas, que aguardavam. No sonho, ele pensou estar no Valhala.
Antes da aurora, os germanos acordaram e foram trucidar os soldados de Varo, acampados não muito longe. Mesmo no meio dos combates, as imagens do sonho não abandonavam Skízi, que, distraído na silhueta de um pão imaginário, abaixou o escudo e foi atingido por um pilo no meio das costelas. O impacto da arma fez com que ele caísse e rolasse para baixo de uns arbustos, onde terminou de morrer acalentando imagens do sonho, que se tornavam mais vivas.
Quando Skízi se amorteceu na escuridão, veio um ruído metálico, uma musiquinha. Era o despertador. Wilsinho Ferreira acordou, tomou um café com leite, vestiu o uniforme do fast-food e saiu para trabalhar mastigando as reminiscências de um sonho esquisito envolvendo uma batalha no meio do mato contra romanos. Justo ele, que não se lembrava, em dezoito anos, de ter sonhado alguma vez na vida e que sempre ficava de recuperação em História.
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Me lembro te ter ido ao circo algumas vezes quando moleque,e sempre tinham esse ar de coisa decadente.
Excelente texto, caro Kovacs. Me lembro do circo do Tatuapé e pedia para meu pai me levar. Meu pai, sujeito que odiava circos, nunca me levou e me proibia de ir com meus tios. Uns anos atrás, perguntei o motivo, ele disse que circos despertavam nele tristeza, ele disse "Eu não queria ficar vendo toda aquela gente triste. Porque eu sabia que eram todos tristes e cresci os achando desolados, famintos. Sinto pena, sinto pena. Fui uma vez só quando tinha 13 anos e nunca vi tanta tristeza." Meu pai tinha se desdobrado para conseguir um ingresso e parece que os palhaços não o convenceu muito de sua alegria.
Bem. Eu moro na Penha, não sei se o circo está lá ainda, mas não vou. Meu pai me convenceu (Mutarelli no Diomedes ajudou a reforçar a visão). Não consigo olhar para os circos sem sentir tristeza.