Cinzeiro de Latão 34
Areia e pedregulhos / Escravidão / Bitucas / Delfim Netto: uma vida de peso / O homem do rádio (conto, primeira parte)
Cinzeiro 34, 17 de agosto de 2024.
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Areia e pedregulhos
As viagens de ônibus não são de todo mal, mas os tempos que correm deixaram as coisas chatas. Por exemplo: me lembro de quando comecei a viajar de ônibus com frequência, ali por 2007. Na parada que o ônibus fazia, no meio do caminho, era possível comer e tomar uma cerveja para empurrar a comida. Proibiram a venda álcool na beira das estradas; leio na internet que não é mais possível saborear uma gelada à beira da pista desde fevereiro de 2008. Uma lata de cerveja costuma deixar a digestão e a viagem mais leves.
É uma grande baboseira, como várias proibições draconianas. Afinal, quem não pode beber é o motorista; mas e os passageiros, tanto dos carros como dos ônibus? O que nos falta é a questão da responsabilidade individual. Ficamos nessa redução de danos e caímos em situações do tipo, ridículas. Porque, por exemplo, nada impede que eu tenha a bebida comigo e a beba dentro do carro, no caso do passageiro, que fique claro.
Há uns paus de enxada por aí que já querem tornar contravenção transportar bebida aberta dentro do carro ou bêbado no banco frontal do passageiro. Não sei qual romano que disse: uma república com muitas leis não tem lei alguma. Há gente que acorda esfregando as mãos e pensando em qual domínio da vida pode ser aplicada uma medida restritiva.
Claro, o condutor bêbado é de fato um perigo, não cabe discussão, mas ampliar proibições e infrações aos passageiros é ridículo. Só torna a vida insuportável nos pequenos detalhes, as chateações sutis, como disse a Tia Zulmira. Às vezes penso, como bom teórico da conspiração, que a ideia seja mesmo essa: nos deixar doidos e paranoicos, mas pelas bordas, sem alarde, devagarzinho e com bastante lubrificante. O que nos mata não é o pedregulho, mas a areia: há poucos pedregulhos, visíveis e pesados; a areia está por toda parte. Mas não consigo confiar na capacidade do legislador brasileiro, cuja alma é a mesma da dona Marocas, ou seja, tem o afã de controlar a vida alheia. O legislador brasileiro é um onanista nato: ele se compraz lascivamente em controlar os mínimos detalhes. A lei brasileira reflete o pensamento daquela sua vizinha que passa a vida bisbilhotando a vizinhança, com a diferença de que a lei pode render algum problema, enquanto a dona Marocas apenas fofoca. O que nos salva da tirania total é que essa sanha de controle, embora seja totalitária, é burra, sem direção. E, visto o material humano que nos rodeia, vai continuar assim enquanto o QI médio não passar de 87. Por sorte.
Escravidão
Semana passada, visitei um amigo aqui da cidade, que mora numa cruchóvica, vulgo predinho de apartamento popular; não os do governo, mas desses para a classe média baixa: acabamento e vizinhança na linha do aceitável. Estava já eu saindo, acompanhado pelo amigo, quando, conversando, paramos antes de chegar ao portão.
Os apartamentos ali valem por volta de 120 mil reais. No estacionamento havia a Belina toda podre do serralheiro, o Fusca de cor indefinível do pedreiro, mas havia também uma quantidade apreciável de carros, principalmente SUVs, cujo preço ultrapassa o do apartamento. Brinquedos caros e brilhosos.
É parte da minha filosofia de vida que carro e casa existem por necessidades nossas: eles nos servem, e não o contrário. Há gente que vira escravo do carro ou da casa. Ali, naquela cruchóvica, alguns habitantes se livraram de ser escravizados pela casa, mas se nota que o foram pelo carro; investiram mais no automóvel do que na casa. A casa também não pode dominar a sua vida, exigindo manutenção excessiva ou ser cheia de complicações que arrebentem com a rotina, como quadrados de LED, mas, se você tem condições para um carro ou uma casa melhorzinha, a opção pela casa me parece mais óbvia. Um predinho que tenha elevador pelo menos, ou que as escadas tenham um revestimento adequado, e não sejam de concreto pintado.
Ao fim e ao cabo, o homem é sempre escravo das suas vontades. Nem que essa vontade seja a de ter o último modelo de carro ou se resuma a colecionar caixas de fósforo.
Bitucas
Não há força estrangeira que manche a nossa bandeira. Afinal, os nossos já limparam a bunda com ela.
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Para se candidatar a qualquer cargo eletivo, o cidadão precisaria fazer um exame, apenas uma redação. Nove décimos da canalha que está aí não passariam.
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A diarreia transforma a sua vida em uma roleta russa, pelo menos por um tempo.
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Um ministro escamoso soltou esta:
“É uma grave anomalia que tenhamos um sistema presidencialista, oriundo do voto popular, convivendo com a figura de parlamentares que ordenam despesas discricionárias como se autoridades administrativas fossem.”
O semiparlamentarismo é o de menos. O ministro Castra e Corta usa hipérbato: boa pessoa não é. Quem usa hipérbato tem o mal dentro de si. Ou, pelo menos, bócio.
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“Forças armadas juram fidelidade a Nicolás Maduro.”
É muito relativo; a cúpula, próxima ao Bigode, lhe pode jurar mundos e fundos, mas há várias correntes lá dentro, como em qualquer caserna mundo afora. Como por aqui em 1964, quando ninguém dentro dos quartéis sabia exatamente o que fazer e para onde ir. A confusão vestia farda. E militar, como se sabe, sofre da síndrome do cavalo de parada: às vezes ele caga no meio do desfile.
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Sempre achamos que o fim do mundo e a decadência dos costumes estão ao virar da esquina. Reclama-se disso desde o tempo dos sumérios, que deixaram sua insatisfação registrada em tabletes cerâmicos, o equivalente às caixas de comentários dos sites. Os candidatos à Prefeitura de São Paulo têm se esmerado na parvoíce e na boçalidade, transformando a rinha política em picadeiro, dando a impressão de que o mundo caminha para um término ridículo, que explodirá num último traque.
Reclamamos do histrionismo dos nossos representantes, mas a coisa não vem de hoje. Pusemos muitos histriões em posições importantíssimas; Jânio Quadros não me deixa mentir. Parece que o fim do Estado Novo fez precipitar essa chusma sobre nós. Getulismo e botulismo: duas doenças que diferem apenas pelo agente causador.
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Este sábado nos levou Sílvio Santos. Com ele se vai parte da história da televisão brasileira e também o porquê da sua desistência de concorrer à Presidência, em 1989.
Se eu fosse São Pedro, não ia perder a oportunidade:
— Ma oe! Vamos abrir as portas da esperança!
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A saída do Twitter do Brasil mostra o quanto o coronelismo ainda reina entre nós. O pensamento político brasileiro é um câncer. O pior é que ele não recua com quimioterapia e tampouco mata o doente. O Brasil, infelizmente, é um zumbi.
Delfim Netto, uma vida de peso
Esta semana nos deixou o maior ministro da Fazenda, em tonelagem, que já tivemos, Antônio Delfim Netto. Delfim teve um peso importante na história; é inegável que a sua perda deixará o passado mais leve.
Eu vinha matando Delfim havia uns quinze anos; ou pelo menos tentando, com a força da palavra. Ele, então com 81 anos, provecto e rotundo, parecia o alvo perfeito: muitos quilos não combinam com muitos anos, e o homem já havia estourado ambas as cotas, apesar da sua teoria das batidas cardíacas. Postei nas mais variadas redes sociais, durante esse tempo todo, #RIP Delfim Netto. Houve período em que postei a frase semanalmente. Sempre vinha alguém perguntar se era verdade. Mas o homem fazia parte de uma elite: a dos gordos longevos. Na vez derradeira, errei a data. A minha última postagem com a frase foi há umas três semanas, depois de um hiato de quase um ano. Na trave.
Não há pessoa que tenha vivido os anos setenta e não lhe venha um retrogosto seboso na boca quando se lembra de Delfim Netto, o onipresente ministro da Fazenda. E bora onipresente nisso. Duas cadeiras.
Era de Delfim o conceito de deixar o bolo crescer para depois poder dividi-lo. Depois de 1977, ninguém viu bolo algum. Desconfia-se que o ministro, em Paris, aguardando a sua transição da Fazenda para a horta, tenha comido o bolo todo.
Vejo a esquerda juvenil se perguntando pelas redes sociais por que a velha guarda da esquerda tem apreço por Delfim, que chegou mesmo a ser conselheiro informal de Lula e Dilma. Nosso ministrão de oito arrobas implantou no Brasil algo que é o sonho molhado da esquerda: o modelo keynesianista, ou seja, a promoção do desenvolvimento pelo endividamento do Estado. O resultado? Cinco anos de bonança e quase vinte de crise, coroados com outra coisa de que a esquerda parece gostar muito: inflação. Delfim apenas foi o responsável pela inflação rampante dos anos oitenta e pela hiperinflação do começo dos noventa. Ele foi ajudado pelas duas crises do petróleo, dos setenta, mas a culpa principal foi dele, por acreditar em um modelo de via única. Por isso as suas críticas gordurosas ao Plano Real, que promoveu a austeridade precária que temos hoje e nos garante uma inflação controlável.
Alckmin, atual vice de conveniência de Lula, diz que Delfim deixou “exemplos valorosos”. O careca já está chamando urubu de meu louro faz tempo, pelo menos desde que deixou o ninho tucano. Meio como quando Marcelo Rezende deixou a Globo.
A estrela de Delfim brilhou com os militares no poder: foi o único regime que seguiu durante a vida. Ocupou cargo público praticamente todo o período, inclusive no governo Figueiredo. Consigo ver a expressão de enfado de João Batista toda vez que Delfim começava a falar. Depois do regime (militar, claro), ainda foi deputado federal por vinte anos, até 2007.
Apôs a marca da pata nos dois papeis mais hediondos deste país: o AI-5 e a ata de defesa da tese do ex-ministro Aloizio Mercadante. No caso da defesa, Delfim começou a sua exposição com uma debochada de leve em Mercadante, o que lhe dá um ponto.
Agora, a questão é saber os lugares que o finado ministro vai assombrar: o Ministério da Fazenda é uma possibilidade; outra é a FEA-USP, a sua alma mater. Não importa o lugar, desde que seja espaçoso.
O homem do rádio
Primeira parte
Deixei já muitos entes queridos — e não tão queridos — no cemitério. O ritual de os velar e enterrar faz parte da minha infância; não havia ano que não visitávamos o Cemitério da Vila Formosa para deixar um tio-avô, um primo de segundo grau ou mesmo algum parente mais distante, cuja única lembrança que guardo é o rosto pálido na moldura das flores. Creio que seja algo natural nas famílias numerosas: os mais velhos deixam, além das histórias saudosas e anedotas, espaço para os mais novos.
Na infância, eu não entendia bem o porquê de enterrarem as pessoas em buracos na terra; talvez brotassem e se tornassem árvores. O Vila Formosa, antes um grande descampado, com o passar dos anos se tornou quase um parque. À sombra rendada das copas das árvores viam-se cruzes de concreto. Quando novas, ainda mantinham sua caiação rosa ou azul; depois ganhavam aquele escurecimento do que fica exposto à intempérie.
Nessas idas ao cemitério, sempre cheias de semblantes carregados — embora para nós, as crianças, era uma oportunidade de rever os primos da mesma idade que vinham de longe, o que terminava em brincadeiras discretas para não chamar a atenção dos adultos —, acabei por me acostumar com as ladeiras de cruzes e árvores. Muito mais que as cruzes, as árvores despertavam o meu interesse.
Dentre as tantas espécies ali em esplendor, havia as árvores frutíferas: abacateiros de vinte metros de altura, pitangueiras, goiabeiras, amoreiras e pés de outras frutas que, por não serem comuns às quitandas, eu não saberia precisar.
Quando passávamos pelo cemitério e era época de alguma fruta, as árvores estavam sempre abarrotadas, cheias de modo incomum, na apoteose da fertilidade vegetal e com muitos frutos já caídos por terra, apodrecendo. Passávamos todos em cortejo, e ninguém reparava nas frutas. Certa vez, quando levávamos algum tio-avô à cova, subindo uma das ladeiras poeirentas do cemitério, puxei discretamente o bolso do paletó do meu pai, para que ele me desse atenção, e eu lhe disse baixinho:
— Pai, por que tem essas árvores no cemitério?
— É pra fazer sombra…
— Sombra pros mortos…?
Ele me olhou com complacência.
— É, pode ser pros mortos também, mas eles não ligam muito pra isso. — E se pôs a olhar as árvores que nos rodeavam: grandes, majestosas e com troncos nodosos.
Puxei-o novamente pelo paletó. O meu pai usava o seu único paletó apenas quando alguém se casava ou morria. Vê-lo vestir o paletó era um sinal.
— E as frutas, pai? Pra quem são? São pros mortos também?
— Não, filho. As frutas os passarinhos comem…
— Mesmo as que caem no chão?
Outro olhar intrigado do meu pai na minha direção. Um raio de sol pálido, escapado às nuvens e ao vento frio, iluminou o seu rosto.
— Bem, pode ser que os mortos tenham a sua parte… a terra filtra.
— E nós, pai? Podemos comer dessas frutas…?
— Melhor não. É melhor comprar na quitanda… as frutas do cemitério são boas só pros pássaros… e pros mortos.
E nesse ponto morreu também o assunto.
Mesmo quando passávamos pela avenida João XXIII, de carro, sempre se via a copa de alguma árvore frutífera carregada por cima do muro alto. Mas ninguém colhia os frutos. Caíam do pé ou apodreciam e secavam ali mesmo, na haste que as ligava à árvore. Morriam pelo chão, às dezenas.
Mesmo as crianças que empinavam os seus papagaios no céu livre de fios do cemitério ou os moradores de rua, que poderiam se empanzinar com as frutas, as evitam. O destino das frutas de cemitério — parece que são sempre grandes, lustrosas, sadias — é chegar ao máximo do seu esplendor e vulgarmente apodrecerem, partilhando o mesmo destino selado ao homem: pulvis es et in pulvis reverteris.
* * *
Depois de ter sido demitido de uma grande fábrica de eletrônicos, no começo dos anos noventa, Cláudio resolveu abrir uma oficina eletrônica. Com o curso técnico e a experiência adquirida no emprego, a empreitada não foi muito difícil. Em pouco tempo, tinha já uma freguesia considerável, e os bons serviços lhe garantiam a propaganda boca a boca, que trazia gente de fora do bairro.
Fora as qualidades como técnico competente, Cláudio ainda era notável pela simpatia. Punha-se por trás do balcão de madeira da oficina sempre com um sorriso de dentes todos no rosto redondo e luzidio. As mãos de dedos roliços sempre estavam entretidas com as chaves de fenda ou com o ferro de solda.
Fazia quinze anos que a loja era no mesmo lugar: numa rua tranquila, que morria na entrada secundária do cemitério. O prédio onde ficava a oficina era dividido com uma floricultura. Cláudio gostava do odor forte das flores que a brisa trazia, mesmo que ali tivessem odor e forma de lamento. Mas isso pouco importava:
— Todos morremos. Ninguém fica pra semente. — Cláudio disse para o barbeiro que tinha loja do outro lado da rua, enquanto esse lhe rapava o rosto.
Olhou bem para o rosto lunar refletido no espelho e repetiu a frase, reparando no movimento dos lábios. O barbeiro sentiu um calafrio, e Cláudio, notando o receio do colega, tratou logo de consertar a situação:
— Ô homem! Que isso! Me preocupa não quando vou morrer, apenas como. Não quero que doa muito, não quero que me deixe a morte preso a uma cama. Que seja rápido e fulminante…
O barbeiro tentou se justificar:
— Não, Cláudio… o que me preocupa não é bem… como ou quando morrer… mas o que tem do lado de lá…
Cláudio respondeu com um sorriso largo:
— Olha, só morrendo é que se descobre: ou seja, mais dia, menos dia, vamos descobrir. Dizem que há o paraíso… Outro dia, na missa, o padre perguntou: “Quem quer ir pro paraíso?”. Todos levantaram a mão. Todos, sem exceção. Afinal, tenho a impressão de que a missão da igreja é nos conduzir ao paraíso, não é? Mas, em seguida, diante daquele monte de mãos erguidas, ele fez outra pergunta: “E quem quer ir para o paraíso… agora?”. Um silêncio estranho apareceu… Quando for a hora, será; fique tranquilo.
Cláudio pagou o barbeiro e se despediu.
Foi abrir a sua oficina, exatamente do outro lado da rua. Já nos afazeres habituais, continuou pensando em como sempre achou mórbida essa preocupação das pessoas com a morte e com o além-túmulo. Lembrou-se da avó, sempre tão temente à ordem divina; fatalista. Missas, sepultamentos. Missas de sétimo dia, círios.
A preocupação de Cláudio era se havia comida do lado de lá. Ouvia falar dos rios de mel e de leite do paraíso e pensava se não haveria, quem sabe, uma bolachinha pra chuchar no leite, ou um pãozinho com manteiga.
— Sempre se vê a morte do mesmo jeito… E se for de outra maneira? Algo que ninguém conhece? Tem aí muitos relatos de gente que vai e que volta… li em alguma parte. Mas li em outra parte que tem também uns cientistas que dizem que isso é por conta de uma atividade cerebral intensa que leva as pessoas à beira da morte a terem visões e…
O pensamento de Cláudio foi interrompido por alguém que entrou na oficina. Os seus dois funcionários vieram do fundo do salão para atender, mas o chefe os interrompeu:
— Não se preocupem. Podem deixar que eu vejo.
Era um senhor de idade, que tinha parado o carro diante da loja e trouxe um rádio capela, de forma ogival.
— Bom dia. Aqui que é a oficina do Cláudio?
— Sim, senhor! É a minha oficina...
— Vim de longe, rapaz, porque tenho este rádio a válvula… era da minha esposa, que já se foi faz tempo… me lembro como se fosse hoje. O carro fúnebre subiu por esta rua…
De fato, alguns cortejos passavam por ali, por conta de o portão principal do cemitério ser na avenida diagonal, muito movimentada, e o passo lento dos automóveis em cortejo prejudicar o trânsito.
— Bem, eu sinto muito… — disse Cláudio, um pouco sem jeito.
— Ora, rapaz, não tem problema! Não sou desses que têm problemas com a dona morte… todos morremos, mais cedo ou mais tarde…
— Curioso… antes de abrir a oficina, estava fazendo a barba ali no meu amigo e falávamos disso. Sou da mesma opinião que o senhor…
— Não é? Mas não se preocupe… vamos tratar agora das coisas entre vivos. Gostaria de saber se o senhor pode consertar esse rádio.
O homem grisalho pôs o aparelho sobre o balcão, e cláudio o examinou.
— Bonito modelo! Tenho a impressão de ter visto um parecido em algum lugar... mexido com um igual, mas não costumo mexer com rádios a válvula… que estranho... Bem, de qualquer modo, se o senhor quiser deixar, posso ver o que posso fazer… mas não garanto muita coisa.
— Ficaria muito caro?
— Depende… depende muito da disponibilidade das válvulas. Elas não são mais feitas e ficamos dependentes das que estão estocadas nas lojas mais antigas. Vamos fazer assim: eu vejo o que pode ser feito e faço um orçamento. Se o senhor não quiser, pode vir buscar o rádio de volta… sem compromisso.
O homem velho sorriu.
— Bom… excelente. Deixo sim.
Depois de fazer as anotações, Cláudio estava à porta da loja conversando com o homem, que já se despedia. O homem parou um instante e olhou para o portão do cemitério, uns cem metros acima. Junto do portão, do lado de dentro, um abacateiro imenso.
— Nossa, mas que abacates imensos! Pena que não estão num pomar ou num quintal…
Um abacateiro grande, de uns quinze metros de altura. Quinze anos ali e Cláudio não tinha reparado que a árvore era um abacateiro. Alguns galhos chegavam a pender, de tantos abacates gordos e brilhantes.
— É… é uma beleza.
— Ninguém os come e é uma pena. Deve ter quase trinta ali, só naquele galho…
— Verdade… pecado.
— Bem, mas já tomei muito tempo do senhor. Então, o senhor me telefona quando tiver o orçamento?
— Sim, sim; telefono. À tarde, se for necessário, mando um dos meus funcionários ao centro da cidade para ver nas lojas de eletrônica se achamos as válvulas… se for o caso de trocar alguma…
— Então, está ótimo. Muito prazer e até logo. — disse o homem entrando no carro.
Cláudio ainda ficou vendo o carro descer a rua, em direção à avenida, e voltou para dentro da loja. Na mesa atrás do balcão, o rádio capela da General Electric, possivelmente dos anos 40: todo de madeira com uns detalhes neoclássicos, parecido com a maquete de um teatro ou de uma igreja. Três botões com incrustação de madrepérola. O aparelho lhe parecia familiar.
Cláudio foi para o fundo da loja e disse a um dos rapazes que cuidasse do balcão. Ao outro, que o ajudasse com o rádio, que era trabalho para cirurgião.
— Sabe, Marcelo — disse Cláudio devagar —, acho que sempre se aprende algo. Você é novinho… já viu um desses? Um rádio a válvula? Imagino que a sua sensação agora deve ser parecida à daqueles estudantes de medicina que veem todos os órgãos em separado, como aqui — e com um gesto do braço, teatral, mostrou os circuitos, potenciômetros e botões pendurados nas paredes — e nesta pequena raridade, esse tesouro do passado, testemunha de sabe-se lá quantos acontecimentos da história mundial: dos mais insignificantes ao fim da Segunda Guerra, por exemplo. Abrir isso, pra você, será uma experiência única! Vai ser como dissecar um marciano!
Marcelo, adolescente que Cláudio empregava como aprendiz, olhava alternadamente, do meio de suas espinhas, para o chefe e para aquele rádio estranho e não entendia nada do que Cláudio falava. Era uma tarefa como qualquer outra. E chata.
Cláudio e Marcelo dedicaram toda a manhã para desmontar, limpar e separar as peças. Cláudio desmontava e desenhava um esquema dos fios; Marcelo limitava-se a limpar as peças e a escutar as palestras do chefe.
— Olha, Marcelo: as válvulas! Hoje as substituíram pelos transistores, que cabem aí onde você tem a sujeira das unhas.
Por baixo das unhas de Marcelo, uma sujeira preta e espessa se acumulava.
Ao fim do trabalho de desmontagem, limpeza e remontagem, o rádio voltou a funcionar. Uma limpeza bastou. Cláudio testou o aparelho várias vezes e o deixou funcionando num canto. A voz fanhosa do rádio antigo substituiu a do aparelho estéreo que costumava ficar ligado.
— E bom trabalhar um pouco, né, vovô?
Eram três da tarde e Cláudio ainda não tinha almoçado. Deixou o Marcelo no balcão e saiu para comer. Chegando à porta, porém, a fome misturada com a lembrança do homem do rádio fez com que ele virasse o rosto para admirar os abacates que pendiam sobre o portão do cemitério.
— Devem estar bons…
Fim de tarde. Um vento frio varria a rua; Cláudio tinha dispensado os meninos e vestia o abrigo surrado de náilon; baixou a porta de aço da oficina e entrou rapidamente no carro, esfregando as mãos. Pelo retrovisor, contrastada pela luz laranja e forte do pôr do sol de inverno, viu a silhueta do abacateiro. Virou-se para trás e fitou a árvore. A vista conseguia distinguir mal e mal pontos redondos naquele breu de folhas contra a luz: os abacates.
A rua estreita estava deserta, e o vento varria as folhas caídas. Havia dois caminhos para Cláudio: descer a rua e pegar a avenida ou subir e cortar caminho pelo cemitério, evitando a avenida. Talvez sua visão da morte tivesse relação com, de quando em quando, usar o cemitério como atalho.
— É um caminho como qualquer outro…
Engatou a primeira e subiu lentamente a rua. Logo que passou o portão do cemitério com a marcha mal engatada, o carro morreu. Exatamente sob o abacateiro. Com a cabeça para fora do carro, Cláudio olhava os abacates que pendiam da árvore, embalados pelo vento que os ninava. Alguns ao alcance das mãos de um homem de pé. A fome da hora do almoço, somada àquela visão, lhe deu vontade de abacate.
— Quer saber? Vou levar uns.
Saiu do carro e tirou do porta-malas um engradado plástico. Pegou o primeiro e o pôs na caixa: maduro e pesado, mas frio, como se estivesse na geladeira. Um pensamento o agulhou: e se alguém o visse pegando os abacates? Certamente terminaria em chacota pela vizinhança. Com gestos rápidos, pegou mais cinco, os colocou na caixa e, acomodando-a no banco de trás, acelerou e se foi levantando poeira.
De dentro do carro, pelo retrovisor, via com gosto que não havia ninguém no portão do cemitério.
— Ótimo. Ninguém viu.
Olhou para trás com o canto dos olhos e os abacates brilhavam sob a luz difusa que entrava no carro. Eram bonitos de se ver.
Cláudio continuou o caminho normalmente.
Em casa, beijou a esposa e se pôs na sala à espera do jantar.
— Já está quase pronto - disse a esposa - fica por perto que eu já chamo.
Ficou ali mesmo, acomodado na poltrona, folheando umas revistas de eletrônica amareladas; tinha centenas delas pelas estantes da sala, no baú do sofá, sob a mesa de centro. Lembrou-se dos abacates. Pensou em falar deles à esposa, mas se lembrando da origem das frutas, pensou também que ela lhe daria uma bronca e fim nas frutas. A palavra lhe morreu entre a língua e os dentes, à metade, num ganido esquisito:
— Uie…
— O que foi, Cláudio? Você sabe que daí da sala eu não escuto; se quer dizer algo, vem aqui até a cozinha.
— Não, não é nada. Estava vendo umas coisas velhas nas revistas e me admirei…
Jantou sem se lembrar dos abacates. Falou de amenidades com a esposa, do filho que estava de férias na casa de uns parentes, do tempo e do rádio antigo que um senhor lhe tinha trazido.
— Nossa, deve ser uma raridade. — disse a esposa.
— E é. E era apenas pó o problema. Sabe como são os mais antigos: põem as coisas num canto e se esquecem delas. Aí, o bolor e o azinhavre agem… limpamos o bendito e ele ficou falando como se fosse novo.
Após o jantar, viu televisão com a esposa. Assim que ela anunciou que ia se deitar, Cláudio sorrateiramente foi ao carro e tirou da caixa um abacate, o primeiro que tinha pegado: pesado e frio; o maior deles. Fruta maravilhosa que brilhava, mesmo sob a luz de mercúrio da iluminação pública, e inebriava pela beleza. Levou-o para a cozinha, o partiu em dois e, na própria casca, comeu a polpa com açúcar. Metade de cada vez.
— Eu fazia assim no sítio do meu vô… só faltou o limão.
Satisfeito, foi se deitar, pensando na felicidade do estômago cheio.
(continua na semana que vem)
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Muito bom o conto final, ansiosa pra segunda parte!
Quero saber como termina a história do Cláudio e os abacates.