Cinzeiro de Latão 41
Caracu / Métodos eleitorais / Não verás canelone nenhum / Bitucas / CPF (conto)
Cinzeiro 41, 5 de outubro de 2024.
Caracu
Nem todo mercado tem Caracu e, quando tem, é pouca: dez ou doze latas. Outro dia consegui comprar um fardo fechado. Raríssimo. Os consumidores de Caracu são raça muito parecida com a dos bebedores de Fanta Uva: são poucos e, embora não se conheçam, conseguem se identificar, como os maçons.
A Caracu é uma cerveja de nicho: seus fãs têm mais de sessenta anos. É produto marcado pela faixa etária. Bebedores mais novos são infiltrados. Ou velhos precoces.
Houve uma época, quando os ovos de codorna do boteco foram postos na salmoura ainda cristalina, em que gente valente pedia e tomava Caracu batida com ovo. Nunca vi ninguém pedindo ou tomando uma beberagem do gênero; talvez seja lenda urbana. Ou vivemos a época pós-valentes, o que é bem provável.
Aliás, “quando os ovos do boteco foram postos na salmoura” funciona bem como “era uma vez”, ou como “há muito, muito tempo”.
Métodos eleitorais
Amanhã eu, você, todos nós, estamos obrigados a ir votar. É a festa da democracia, festa a que você vai por obrigação; uma festa, no mínimo, infeliz. Nem se preocupam em mandar uma garrafa de Dolly.
As eleições municipais conseguem ser mais tristes que as gerais. Nestas, o candidato precisa de algum cacife para sair: a campanha é cara, e os partidos querem investir em quem tem chance de ganhar, ou, pelo menos, de barganhar uma boquinha em troca do apoio no segundo turno. As municipais, pela sua abrangência, permitem que, nos lugares menores, qualquer cafona filiado a partido saia candidato, o que deixa ver a quantidade de gente amalucada em busca de uma sinecura. A vedação às candidaturas independentes nos livram de uma enxurrada ainda maior de Zés da Borracharia e Marcões da Escolinha de Futebol. E a cara dessa gente é pavorosa, antiestética. Vejo com frequência esses adesivos que cobrem o vidro traseiro todo do carro. Quem, a não ser o próprio candidato, colocaria a fuça, o sorriso sacana ou os traços mal-ajambrados no vidro traseiro? Lombroso confirmaria as minhas ressalvas.
Arrisco dizer que a quase totalidade dessa gente ignora a função de um vereador; falam por si as propostas feitas naqueles poucos segundos que os candidatos têm no horário eleitoral gratuito. Uma vez vi um postulante a vereador, que se vendia como representante dos radioamadores, prometer alterações na regulamentação da categoria, tema privativo da União. É isso que transforma as câmaras de vereadores em valhacoutos da indigência mental. Basta lembrar o caso de uma câmara do interior da Bahia que emendou a Constituição Federal para aumentar próprio o número de vereadores.
Faz muitos anos que anulo voto. Preciso ir à urna, como todo mundo, “comparecer”, mas nada na minha consciência me obriga a dar voto a qualquer espertalhão, seja ele chinelão ou sapato de cromo. É inútil tentar me convencer sobre voto útil, que é um desperdício anular. Não quero saber. Não sujo mais o meu dedo com essa gente. Não sou proctologista.
Durante um tempo, em vez de anular, eu procurava o candidato mais fachada que pudesse encontrar. E os desse tipo, não os encontramos por aí voando sobre uma nuvem de santinhos; é preciso ir às listas oficiais de candidatos, emitidas e chanceladas, se não me engano e se a coisa não mudou, pelo TRE. O candidato de fachada é aquele colocado lá para fechar cota; são duas que os partidos precisam cumprir: racial e de mulheres. Logo haverá outras, é questão de tempo. Havia candidaturas femininas que eram número apenas; por isso a questão do santinho: nem se fazia material de campanha. Hoje, imagino que com a fiscalização mais severa do TRE, os partidos devem ter lá um material mínimo, uns cem santinhos, só para requentar a candidatura gelada.
Bem, eu pegava o candidato que acreditava ser um desses cubos de gelo e votava nele. É uma espécie de voto nulo, mas de alta especialização. Na primeira vez em que votei em Culumúndia fiz isso: escolhi lá o meu gelinho e votei nele, que, nos resultados, apareceu com um voto, ou seja, nem ele e nem a família tinham se dignado a votar. Abaixo dele estavam os que não registraram votos; fachada, certamente. Um lodo eleitoral decantado. Mas acho que, naquela eleição, eu tirei o sono do fulano, que se perdeu em elucubrações para tentar descobrir quem tinha votado nele, ato que o próprio não teve coragem de fazer. Imagino o candidato perguntando aos colegas de boteco, à família, quem tinha votado nele, quem tinha cometido o despautério, quem o tinha marcado com aquele voto, já que todos tinham prometido não votar, pois a candidatura dele era só “pra ajudar o pessoal”.
Ou ele simplesmente não ligou, que é o mais lógico. Mas gosto de imaginar encrencas e colocar as pessoas nelas. Nem que seja para encher linguiça para a news. A cota de seis páginas corridas precisa ser cumprida.
Não verás canelone nenhum
Dando prosseguimento ao tema candidatura de fachada, me lembrei de uma história, de quando eu trabalhava no jornal. Era 2014, ano de eleição geral. Depois de termos coberto a visita da Dilma à Embraer de Gavião Peixoto e recebido a visita de Eduardo Campos, a editora-chefe teve uma ideia interessante: entrevistar os candidatos a deputado federal e estadual da região. Ideia boa, porque o acesso aos presidenciáveis e aos governadoráveis nem sempre é fácil; os que estão no topo das pesquisas costumam esnobar a imprensa, como tinha feito dona Dilma umas semanas antes.
Os candidatos a deputado costumam se contentar com qualquer fiapo de atenção, qualquer canto de página. Todos os contatados responderam aos convites. Não pude participar diretamente dessa vez: era muita gente e o saco estava curto, além dos horários, que batiam com os do meu segundo emprego. Logo, o que se segue é um relato de segunda mão, mas confiável.
Deram as caras na redação as raposas felpudas, dessas que ganham eleições até de dentro da cadeia, as apostas dos partidos, dos anódinos aos destrambelhados, e também deu as caras a dona Cleusa. E quem é a dona Cleusa? Já me explico. É a melhor parte.
Os candidatos sempre aparecem nessa situação com um assessor a tiracolo, que, no fim, é quem acaba respondendo quase tudo. Há político que poderia economizar tempo mandando apenas o assessor à entrevista e ficando em casa, mas ele insiste em acompanhar o assessor para o atrapalhar.
A dona Cleusa, candidata a uma poltrona confortável no Palácio Nove de Julho, apareceu sem o assessor, de vestido bem vovó, com uma bolsa e os cabelos tingidos enrolados num coque; tinha um ar meio Palmirinha Onofre. Livre, leve e solta, causando estranhamento na equipe do jornal, acostumada com o séquito de puxa-sacos e rêmoras dos partidos.
E a dona Cleusa foi entrevistada. Disse que a candidatura dela ia dar ênfase ao social. Perguntada sobre alguma iniciativa da qual ela já fazia parte nessa seara, ela respondeu orgulhosamente que fazia canelone para vender na igreja, e que o dinheiro era usado para a compra de cestas básicas. Não sei se a manufatura de canelone pode ser considerada política pública voltada para o social. E dona Cleusa falou, falou muito. Ela escorregava dos temas das perguntas juntando um assunto no outro. Contou sobre as plantas da vizinha (a pergunta começou em alguma coisa sobre política para o agronegócio), sobre a colega que roubava no buraco (o tema original da pergunta era transparência institucional). A entrevista, que deveria ocupar as duas páginas centrais do primeiro caderno, quando editada, mal deu meia. A referência ao canelone ficou.
No fim, dona Cleusa disse que estava saindo candidata para ajudar o partido do filho (“Tadinhos, os meninos não tiveram candidatos suficientes, e tem uma cota de moças lá pra cumprir”). Dona Cleusa correspondia perfeitamente à imagem da vovó bondosa, que faz bolo para os netos e lhes conta histórias antes de dormir. O filho, desocupado metido com política, enfiou a velhinha como candidata para cumprir a cota de candidaturas femininas. Isso foi cortado da entrevista também, em respeito à dona Cleusa. Ela se despediu dizendo que ia mandar os afamados canelones para os jornalistas.
A candura da dona Cleusa deve ter enganado a turma: já estava se convertendo em política: fez a primeira promessa que não cumpriu. Nunca vimos canelone algum.
Bitucas
Já chamei um Muricy de dona Muricy, nos tempos de bancário. Liguei no telefone da casa do Muricy. Era cedo, e o homem estava de férias. O telefonema era para lembrá-la de uma parcela de empréstimo atrasada. Dona Muricy, de voz cavernosa, ficou bem brava. Masculamente brava.
* * *
Gosto muito de ver humorísticos antigos no YouTube: Casseta & Planeta, TV Pirata, Chico Anysio. Os de hoje me parecem uma sopa indigesta de palavrões e gritos. Ou simplesmente não são engraçados. Dia desses, eu via um trecho do Chico em que ele interpretava o inolvidável Bento Carneiro, o vampiro brasileiro (ptuf!). O meu rebento mais velho, indelicadíssimo:
— Quem é esse, pai? É o Coringa da Shopee?
CPF
Volto em cinco minutos; é entrar e sair. Foi o que disse o engenheiro aposentado Rubens Modesto para si mesmo ao sair do carro e entrar na farmácia. Farmácia nova, onde tudo refulgia de novo, com mostradores ainda sem as marcas dos dedos dos clientes que não sabem indicar algo sem deixar a impressão digital no vidro. Tudo branco, azul e uns relances de vermelho. Cores básicas de farmácia, tirando alguns estabelecimentos que incluem o amarelo. Rubens ia pegar o remédio e sair; a esposa o esperava em casa: iam almoçar no restaurante árabe por quilo de que ambos gostavam. Um pequeno prazer no orçamento do mês.
O cardiologista, de cujo consultório Rubens tinha acabado de sair, receitou um remédio novo, que, disse o diplomado, era melhor porque dava menos efeitos colaterais. O cardiologista, o doutor Chiasso, tinha uma parede recoberta de diplomas e certificados, dezenas. Os dois regulavam de idade. O doutor Chiasso resolveu se manter na ativa, enquanto Rubens, depois de anos dedicados a construir predinhos de apartamentos todos iguais, resolveu se aposentar. Era conveniente passar na farmácia antes de ir para casa. E aquela estava no meio do caminho; Rubens sentiu o conforto da conveniência, que é uma sensação de quentinho indeterminada. Parecia que a farmácia tinha sido montada ali para ele.
O engenheiro entrou e cumprimentou os atendentes. Mostrou a receita ao que se adiantou, um moço meio pálido. O rapaz começou a procurar o remédio no computador. Disse que a farmácia tinha o medicamento e que tinha um desconto, bem generoso, de 70%, mas era preciso fazer um cadastro no sistema. Rubens aceitou, pois a novidade do doutor Chiasso não era muito barata.
CPF, nome completo, endereço e telefone. Cada pergunta espaçada por quase um minuto, ou mais. É difícil medir o tempo quando ele se dilata além do esperado. Por fim, o rapazinho pálido passou para Rubens a cestinha de plástico com a caixa do remédio dentro e indicou o caixa, do lado oposto do ambiente. Quando Rubens, com a cestinha, encostou no caixa e disse boa tarde, o outro rapaz, também pálido, perguntou o CPF, que saiu da boca do engenheiro com um quê mecânico. Um tempo desconfortável decorreu entre o fornecimento do número, o caixa passar o produto e o pôr numa esteira.
— O senhor o pega no pré-saída, ali na frente.
Rubens chegou ao balcão de pré-saída. O conferente pediu o CPF, que o aposentado repetiu pela terceira vez; o som era o de como pedras caindo num prato de metal. O conferente, também pálido e vítima de uma velhice precoce, levou uns momentos longos para liberar o remédio.
— O sistema, né?
Finalmente ele deu a sacolinha a Rubens, que levantou os olhos para onde tinha visto a saída ao se aproximar do balcão de pós-saída, mas ali só estava uma prateleira com barbeadores.
— A saída?
— Daquele lado, passando pelo corredor.
Mas Rubens não tinha entrado por corredor algum. Ou pelo menos não se lembrava. Passou pelo corredor e chegou a uma continuação da farmácia, com gôndolas de produtos, tudo em branco, azul e toques de vermelho, com balcões. Havia outros atendentes.
— A saída?
— Por aqui, por favor.
Rubens e um atendente atravessaram aquele ambiente da farmácia e chegaram a um corredor onde havia uma catraca com um teclado numérico.
— E só digitar o CPF.
Rubens digitou o número, e a catraca se destravou. Ele passou e seguiu pelo corredor ladeado de mostradores com sabonetes e desodorantes. Saiu em outra continuação da farmácia, com os mesmos detalhes brancos, azuis e pontos vermelhos. Rubens viu, no fundo, uma porta com uma luz que parecia externa e foi por ela. Era outro salão da farmácia, cheio de gôndolas com preservativos e produtos para as intimidades. Outro atendente pálido, com os olhos azuis, mas de um azul mortiço, muito claro, passou um leitor ótico na caixa do remédio de Rubens e indicou outra porta, ladeada por aqueles alarmes antifurto. Rubens passou; no fim de um corredor mais largo, percebeu uma luminosidade diferente, como se fosse a diurna. Correu ali e deu de cara com outro salão da farmácia.
Era incrível que uma farmácia tivesse tantos ambientes. Rubens decidiu voltar pelo caminho que veio, mas, ao se virar, deu de cara com uma parede; se sentiu confuso e desconfortável. Foi em direção ao salão, em passo acelerado. O mesmo azul, o mesmo branco e os mesmos detalhes vermelhos, a mesma luz branca das lâmpadas fluorescentes. Os mesmos atendentes pálidos, todos iguais, como irmãos. O uniforme da farmácia fazia deles a mesma pessoa. Indicaram a Rubens uma escada que descia, mas ele não lembrava de qualquer desnível em relação ao nível da rua. Rubens era engenheiro aposentado; um detalhe desse não lhe teria passado despercebido. No final da escada estava um conferente pálido, que controlava um tipo de cancela, como a dos pedágios.
— Saída?
— CPF e quatro palmas.
— Palmas?
— Isso — e bateu palmas para demonstrar.
Cansado, Rubens disse o CPF e bateu palmas.
— Não. Tem que bater palmas enquanto canta os números.
Mesmo se sentindo ridículo, o engenheiro Rubens bateu palmas e cantou os números do CPF ao mesmo tempo. O atendente disse “olé” e subiu a cancela. Outro salão de farmácia. Rubens olhou para trás para xingar o atendente e deu de cara com prateleiras cheias de buchas de banho. Naturais.
Rubens passou por um corredor de complementos vitamínicos; parou e pegou umas caixas para examinar. Veio um atendente, quase azul de tão pálido, ajudá-lo e explicar sobre as vitaminas. Conversaram sobre amenidades: o tempo, a política, mas também algumas questões metafísicas. No gancho metafísico, Rubens aproveitou e fez a pergunta que lhe atazanava a consciência, mas cuja resposta ele já sabia.
— Isto aqui tem saída?
O atendente pálido se limitou a dizer que não com a cabeça.
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Um entendido certa vez classificou a Caracu como stout. Na hora veio a lembrança do garçom na churrascaria oferecendo “shoulder”.
Velho precoce, consumo Caracu e odeio dizer o CPF. Aliás, peguei o finalzinho do CIC (1993), que ninguém pedia. Ninguém sabia porque tinha o CIC.